sábado, abril 22, 2006

Dia 9: De Bouanane à Hamada du Guir

Alvorada! O dia estava magnífico. Pelas 8 da manhã já eu cozia em lume brando dentro duma tenda que mais se assemelhava a um forno!
Enquanto levantávamos o acampamento, dois vultos surgiram no horizonte. Os marroquinos de meia idade aproximaram-se, cumprimentaram-nos, observaram-nos e partiram.
"São militares" - disse o Quim - "O posto está além no cume daquele monte!"
Concerteza que nos viram a sondar a àrea e a acampar na noite anterior... Afinal, estávamos bem guardados! :)

Deixámos o local e seguimos a estrada para Sul. Precisava de àgua e a localidade seguinte, Ain Chouater - última povoação antes da fronteira, ficava mais próxima.
Comprámos àgua e regressámos. Antes da localidade já tínhamos visto uma ténue pista que divergia para Oeste, sobre a nossa rota em direcção a Boudnib, e decidimos que seria mesmo por ali que seguiríamos.
A pista rapidamente desvanecia na planície. Continuámos fora de pista até às margens do oued Bouanane. Prosseguimos para Noroeste, ao longo da margem do oued, para encontrar uma passagem acessível através do leito profundo e arenoso.
Finalmente uma descida pronunciada, em areia, possibilitava a travessia. Entrámos no leito e, algumas dezenas de metros depois, alcançávamos saída na outra margem.
Continuávamos off-pist até alcançarmos uma pista abandonada, praticamente rectilínia, que seguia precisamente na direcção de Boudnib. Tinha sido construida, por maquinaria, com uma precisão geométrica. Ao longo de quilómetros mantinha sempre o mesmo azimute e não se desviava de absolutamente nada! A julgar pelo seu estado, pouco teria sido utilizada e não aparentava sinais de passagens recentes.
Seguia paralela ao oued Guir a uma distância média de, talvez, um quilómetro. Profundos regos transvessais - uns pequenos e ultrapassáveis, outros enormes mas contornáveis - provocados pelas àguas das chuvas que escorrem vale abaixo até ao oued, contribuiam ainda mais para a degradação da pista.
Se esta era, na generalidade, fácil e agradável, o que poderei dizer da paisagem? O oued Guir, decorado constantemente pelo verde intenso dos palmeirais, proporcionava um panorama simplesmente fantástico materializando uma inconstestável verdade universal: onde há água, há vida!

Se o presente percorrer destas pistas representa o concretizar de um desejo, é verdade maior que fertiliza o solo de onde germinam constantemente outros mil. Desejo ainda percorrer o leito sinuoso deste oued. Espero seguir, um dia, os trilhos que se perdem na àrida distância daquele erg. E que encontrarei eu para lá deste imponente jbel? - são desejos que nos inundam o ser a cada hora que passa, como uma sede insaciável que nos leva a perseguir a miragem de um oásis, através da imensa secura de um deserto, quando de antemão sabemos que apenas mais sedentos iremos ficar.

Chegámos a Boudnib por volta do meio-dia. Parámos junto ao restaurante Hamada du Guir, na praça central, dispostos a digerir mais uma refeição condigna. Instalámo-nos na esplanada, sob as arcadas do restaurante, fintando a praça.
Alguns miúdos brincavam em redor duma seca fonte artificial enquanto pequenos grupos de militares se passeavam a uma cadência preguiçosa.
Decorada simplesmente com alguns bancos de jardim a praça, tal como tudo o resto, torrava sob o sol já escaladante do meio dia.
Numa extermidade, um pequeno aglomerado de pessoas diâmbulava naquilo que parecia ser uma feira de bicicletas.
O calor desencorajava a permanência no exterior. Raros eram aqueles que deixavam a protecção refrescante da sombra proporcionada pelas arcadas dos edifícios que rodeiam a praça.

Enquanto aguardávamos serenamente as tagines de borrego e frango, um estranho e jovem indivíduo aproximou-se do Alex e cumprimentou-o. Após alguns instantes, beijou e afagou-lhe o ombro enquanto balbuciava algumas palavras. Não se percebia propriamente o que ele pretendia... nem por que razão tinha escolhido o Alex! :P
Eis que tenta, novamente, beijá-lo. Gato escaldado... e o tipo espantou-se!

Refeição saborosa, preço justo e serviço atencioso - para o Alex, até com uma atençãozinha extra! :) Assim se resume o nosso almoço no restaurante Hamada du Guir - Recomendado.
Esta era a última refeição que partilharíamos os cinco. O Ricardo deixáva-nos hoje para iniciar o regresso a Portugal.

As escassos metros da praça ficava o posto de abastecimento. Numa pequena loja de ferragens, uma arcáica e desmembrada bomba manual dispensava gasolina enbarrilada, a força de braços.
Uma coluna de jipes franceses deteve-se junto à oficina para também abastecer, um primeiro sinal de que estávamos a chegar ao Sul de Marrocos - e à Meca do TTurista. Os nossos dias por pistas isoladas pareciam prestes a terminar.

Finalmente, o marroquino deu por concluido o exercício dorsal. Esticou-se e pediu 14Drh/litro!... Nada a fazer, ali há escolha! Dez litros para cada um será suficiente até Merzouga.

Despedímo-nos do Ricardo e atacámos uma pista para Sul à saída de Boudnib. Após alguns quilómetros em direcção à localidade de Taous por pista arenosa, subimos através duma extensa trialeira e fletimos para Sudoeste ao longo da Hamada du Guir.
A pista era agora pedregosa e orientava-se progressivamente para Sul percorrendo, à escassa distância permitida, a base da Hamada du Guir para lá da qual se estende a zona militarizada de fronteira com a Argélia.

E porque estarão marroquinos e argelinos de costas voltadas?
O conflito trans-fronteiríço remonta aos anos 50, quando a Argélia estava envolvida na gerra da independência contra a ocupação francesa (1954-62). O então lider nacionalista argelino, Ferhat Abbas, entregou os territórios, que Marrocos reclamava como históricamente seus, em troca do apoio do reino contra os franceses. Depois de Ferhat Abbas ter sido afastado do governo da Front de Libération Nationale, pela coligação militar liderada pelo radical Ben Bella, o governo argelino escusou-se de qualquer intenções de respeitar compromissos assumidos por Abbas ou reconhecer as pretenções de Marrocos, sejam políticas ou históricas, acusando Marrocos de aproveitamento da frágil condição da Argélia do pós-guerra.
Em Outubro de 1963, após vários meses de pequenos conflitos fronteiríços entre os dois países, Marrocos empreendeu uma ofensiva em larga escala naquela que ficou conhecida como a "Sand War" - guerra de areia.
Apesar da manifesta superioridade militar, Marrocos não coseguiu penetrar a sólida e experiente defesa argelina, protagonizada principalmente pelos veteranos da guerra da independência, e acabou por recuar após três semanas de combates.
Em Fevereiro de 1964, Marrocos e Argélia assinaram formalmente um cessar-fogo e, posteriormente, os acordos de paz.
Apesar disso, o mal-estar continuou. Em 1975, Marrocos ocupa o Sahara Ocidental - após Espanha se ter retirado - e a Argélia imediatamente apoia a frente Polisario nas suas pretenções independentistas.
Tindouf na Argélia, território que chegou a ser reclamado pelo reino de Marrocos, hospeda desde então um número muito significativo de refugiados saharawi e é a base da frente Polisario e do governo exilado do Sahara Ocidental.
A herança da "Sand War" perdura e ainda hoje as fronteiras entre os dois países permanecem fechadas.
Marrocos mantêm estancionados importantes contingentes militares em todas as principais localidades fronteiríças. Uma faixa militarizada interdita, delineada pela chamada segunda linha, com vários quilómetros de largura percorre toda a fronteira do país. Em algumas zonas onde a passagem é tolerada, postos militares controlam a entrada e saída de pessoas e viaturas, fundamentalmente, TTuristas.

Nesta zona de Marrocos, a Hamada du Guir marca a separação os dois países e todas as pistas que divergem na sua direcção estão interditas. Ao longo da berma escarpada da Hamada, postos militares marroquinos pontuam as elevações mais pronunciadas, com panorama priveligiada sobre uma vasta àrea. Para lá da enorme barreira natural que se ergue ao lado na longa pista que seguimos, extende-se uma imensidão planáltica que penetra pela Argélia. Que pena não podermos por ali seguir. Que pena que os povos não se consigam entender. Que pena que persistam fronteiras políticas no mundo. Que pena...

Praticamente rectilínia, interrompida frequentemente pelas enormes depressões e reentrâncias provocadas pelo escoamento de àguas, a nossa pista seguia paulatinamente para Sul-sudoeste durante largas dezenas de quilómetros.
Quando chegámos ao vale do Bou Iferda, as trialeiras sucediam-se e chegou-se a colocar a hipótese de voltar atrás e apanhar outra alternativa. "Nada disso!" - se aquela pista segue por ali, era por ali que nós seguiríamos também! Ultrapassámos o vale e a pista fletia para oeste, afastando-nos da Hamada que se erguia à nossa frente.

O Sol lá se ia despedindo à medida que o vento forte levantava e, quando alcançámos o oued Taggourt, decidimos percorrer o seu leito até encontrar um bom local para pernoitar. Alguns quilómetros depois ancorámos no macio solo arenoso do oued, sob a protecção duma encosta acentuada. Montámos o acampamento e preparámos o jantar.
Eu, relutantemente, lá regressei à ração de combate e uma conserva de lulas, acompanhada com um bocado de pão, permitiram-me enganar a fome.

Já estávamos, em linha recta, a cerca de 40 quilómetros do Erg Chebbi. Pela manhã chegaríamos ao parque de diversões mais famoso de Marrocos. "Dunas..." - e fomos todos descansar.

Percurso do dia

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