domingo, abril 30, 2006

Dia 17: Do Oued El Mellah a Moutbanc

Deixámos as margens calmas do Oued El Mellah já passavam as 10h30. Seguimos para sudoeste, em aproximação à zona fronteiriça, ao longo das pistas rápidas e bem marcadas do Dakar.
A paisagem era maioritariamente plana, seca e pontuada regularmente por acácias. Em algumas zonas mais baixas, tendencialmente mais húmidas, a concentração desta espécie era substancialmente superior. Isso constituía também uma ameaça à progressão pois os seus espinhos, rijos e longos, caem e espalham-se por toda a parte.
Tínhamos rolado cerca de meia hora quando o Luís Ferreira, à minha frente, pára com a roda da frente furada.
O calor do Sol não dava tréguas e, com cuidado, encostámos as motos à sombra das acácias para dar início à operação de reparação que se prolongaria, calmamente, por cerca de hora e meia.

Seguíamos para oeste e não demorámos mais de 20 minutos a alcançar o primeiro controlo militar do dia. No local, já aguardavam 4 ou 5 jipes com matrículas europeias e vários TTuristas. O posto, uma pequena barraca de adobe com telhado de madeira e canas, ficava no cruzamento de várias pistas. A azáfama era grande.
Os militares reuniam os passaportes e comunicavam a informação via rádio para o posto de controlo seguinte. Depois indicavam qual a pista que, obrigatoriamente, deveríamos seguir.
Após 10 minutos, deram-nos ordem para prosseguir. Avançámos pela pista indicada, azimute sudoeste, quando o que realmente pretendíamos era seguir por outra mais para sul. Mas não deixaram. C'est interdit.

Cerca de meia hora depois, através duma zona estreita e arenosa, chegámos ao Oued Moudils. A vegetação circundante oferecia o agradável abrigo para almoçar.
Deslocá-mo-nos ao longo do oued para nos afastarmos da pista. Em breve passariam as restantes viaturas e não precisávamos de os estorvar!
Sentado à sombra duma enorme acácia, enquanto discutíamos já o futuro da expedição, saciei-me com uma conserva de lulas recheadas e outra de atum com tomate. Como sobremesa comi uma laranja.

O dia passado em Foum-Zguid tinha um preço. Não foi causa única, mas consolidou as nossas certezas de que já não teríamos tempo para chegar a Smara, no Sahara Ocidental. Discutíamos, portanto, o que fazer daqui para a frente.
Havia alguma divergência entre duas alternativas: continuar a seguir a rota traçada ou reformular a rota, apontando desde já para Norte.
Acordámos em seguir a rota planeada o mais possível. Pessoalmente, tinha alguma esperança de conseguir forçar o andamento e ainda alcançar Smara. Mas seria difícil.

Quarenta minutos depois, estávamos em movimento. A pista começava a apontar para noroeste, desviando-nos do nosso azimute e afastando-nos da fronteira. Eram umas 15h45 quando chegámos a posto militar seguinte. Controlaram novamente o passaporte, comunicaram com o outro posto e deixaram-nos prosseguir.
Por volta das 16h30 chegámos a uma encruzilhada. À nossa esquerda, uma pista bem marcada seguía para sul. Achámos que poderíamos seguir por ali. Tinham-nos ordenado que seguíssemos por aquela pista, mas não nos disseram até onde! A somar, ali não havia qualquer controlo nem outras informações que pudessem indicar que se tratava de uma pista interdita. E por ali seguimos.

Não demorámos muito a chegar. Foram talvez 10Kms. À nossa frente, edificado junto ao sopé de um monte, ladeado de muros de pedra pintados e composto de vários edifícios e casernas, estendia-se um quartel militar. O perímetro parecia deserto, embora a muralha que se erguia diante de nós nos impedisse de enxergar o que se passava do outro lado. Sem parar, divergimos da pista principal, tentando passar despercebidos e contornar aquele enorme monte de terra.

Sem saída. Estávamos num enorme beco. Detrás do monte saem meia dúzia de militares a correr, e a gritar, na nossa direcção. Alguns de chinelos, poucos de farda, outros empunhando a AK47, as famosas Kalashnikov...

Parámos, desligámos os motores e aguardámos instruções. Um militar jovem, de t-shirt, calças de fato-treino e havaianas, aparentemente o mais graduado do grupo, dirige-se a nós ofegante, irritado e ordena-nos que o acompanhemos. Seguimos lentamente sob escolta até próximo da entrada para as trincheiras ocultas atrás do monte. Oferece-nos chá, que recusamos educadamente. Ordena-nos que aguardemos e desaparece. Os restantes, os das AK47, ficam junto de nós.

Passados escassos minutos regressa já com farda, botas e óculos escuros estilo aviador. Aponta para o quartel, que distava cerca de um quilómetro, e ordena novamente que o sigamos. Oferecemos-lhe boleia e ele senta-se à pendura de uma Africa Twin.
Lentamente aproximá-mo-nos do quartel. À chegada o comandante salta de cima da AT, ainda com a moto em movimento, e ia-se estatelando no chão. Não consegui conter o momento cómico. Recompõe-se, retira os óculos, sacode a cabeça, pede os passaportes, ordena que aguardemos e afasta-se rapidamente para um dos edifícios.

À nossa volta vão-se juntando mais alguns militares, curiosos com a nossa presença e com as motos.
Cerca de um quarto de hora depois, regressa acompanhado de um oficial mais velho. Aparentava cerca de 50 anos, talvez coronel, era baixo, obeso, muito lento... física e mentalmente.
Insistia em saber como tínhamos ido ali parar. A nossa explicação era rápida e simples mas, apesar do auxílio do jovem comandante, teve algumas dificuldades em perceber. Depois, com a situação clarificada, instalou-se o ambiente amigável. Anotaram os dados do passaporte, matrículas das motos e deram-nos instruções para regressarmos à pista de onde tínhamos divergido.

Despedi-mo-nos e partimos para Norte. Cerca de 4Kms depois, já sem o aquartelamento à vista, divergimos novamente da pista em direcção a Oeste.
Subimos a uma região planáltica com cerca de 6Kms de largura, chamada Adtiliya, para lá da qual na divisávamos passagem. Parámos as motos por instantes enquanto contemplávamos a grandiosidade do vale que se estendia diante de nós.
O Quim, do alto do penhasco, fintava o horizonte em busca de alternativas. El Capitan!

Durante alguns quilómetros andámos à procura de caminhos até que, já no outro lado do vale, encontrámos novamente a pista do Dakar! Estava cheia de regos profundos e irregulares o que indicava que, na altura em que foi percorrida, se deveria assemelhar a um pântano e deve ter sido um autêntico calvário para os participantes da prova. Também não tinha nenhum aspecto de ter sido utilizada recentemente. Seguimos ao longo da pista para Sul paralelamente, a cerca de 6Kms de distância, à estrada entre Tata e Akka.
Parámos junto ao oásis de Si Al Mahdawi. Eram cerca das 18h30. O Sol já estava baixo mas tínhamos ainda uma hora de luz para encontrar local de acampamento.
Após alguns minutos de descontracção a coluna prosseguiu novamente. Continuámos a progredir para Sudoeste. A pista descrevia um enorme S enquanto subia por uma encosta acima, através duma estreita trialeira completamente escavacada pelos rodados dos camiões.
Depois continuava ao lado do planalto de Al Ghans. Por esta altura já tinha me tinha deixado para trás, para manter a distância do resto do grupo que me permitia evitar o pó e acelerar ao meu belo prazer!
Ao cabo de uns 10Kms cheguei a uma encruzilhada com outra pista à direita. Não vi ninguém e, como tal, segui em frente. Ainda não tinha passado um quilómetro quando começo a ouvir alguém a gritar. Pela encosta adjacente abaixo, corria um militar marroquino na minha direcção. Imagino que tenhamos colocado as tropas fronteiriças todas em alerta vermelho! Tal foi a quantidade de vezes que comunicaram por rádio a nossa localização que já todos deviam saber que por ali andavam uns tipos de moto a tentar furar o cordão de segurança! Parei a moto e aguardei.
- "Où allez-vous?" - exclamou, ofegante.
- "Je vais avec mes amis! Les avez-vous vus?" - respondi, tentando confirmar se teriam seguido em frente.
- "Oui. Ils sont allés de cette façon!" - respondeu, apontando em direcção à outra pista mais atrás.
- "Merci! Au revoir!" - e pus-me a milhas antes que perdesse o factor "surpresa" e o militar começasse a pedir documentos!
Dez minutos depois, encontrei o restante grupo já parado junto ao oásis de Moutbanc.
Eram quase 19h30 e decidimos instalar ali o bivouac no meio do palmeiral.

Montámos as tendas à medida que a noite ia caindo. Entretanto comentava com o Jacinto que me estava mesmo, mesmo, mesmo a apetecer uma cola geladinha! A localidade estava ali ao lado, a 3Kms de pista mais 15Kms de asfalto, e não resistimos! Pegou na moto dele, montei-me à pendura, e lá fomos nós a caminho de Akka em busca duma cola fresquinha!

Chegámos a Akka em boa hora! As ruas fervilhavam de vida e o café abarrotava de locais, em torno de um televisor, a ver um jogo de futebol! Sentei-me numa das mesas da esplanada enquanto o Jacinto foi buscar as colas. Imediatamente, aborda-me uma jovem relativamente abonada, envergando um top e umas calças de ganga justinhas, munida de um discurso, no mínimo, radical...
Ninguém se parecia importar muito com a questão. Mas não deixei de estranhar a exibição de tais comportamentos em público. Talvez o preconceituoso afinal tenha sido eu... pois, decididamente, não esperava presenciar tal exibição em plena praça duma pequena e esquecida localidade do sul! Mas presumo que também ali ninguém estaria à espera de ver, àquelas horas, dois estrangeiros a chegar à localidade, de t-shirt e chinelos, montados numa moto e sem qualquer bagagem.
O Jacinto regressou com as colas e o assédio continuou durante mais alguns momentos. Pouco depois fartou-se da nossa indiferença e foi à sua vida. Aproveitámos depois para comprar algumas guloseimas para levar connosco: café, massas, chocolates, tabaco e mais uma garrafa de 2ltrs de cola fresquinha!!
Já com as compras aviadas, regressámos ao acampamento para tratar do jantar. Cozi um punhado de massa espiral e acompanhei com o inseparável atum com tomate.
Tomámos um café, conversámos durante algumas horas, diverti-mo-nos com mais algumas histórias do infindável repertório de peripécias do Quim e, satisfeitos, fomos descansar!
Ahhh, aquele céu!...

Percurso do dia

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2 comentários:

Kr0nUs disse...

Grande maluco!

Sempre em viagem...
Parabéns por este excelente blog e obrigado por partilhares as tuas experiências.

Um grande abraço,

Rui Costa

Antonio Teixeira disse...

Parabéns pelo relato, está simplesmente divinal!