segunda-feira, abril 17, 2006

Dia 4: De Torres de Alcalá a Al Hoceima

A luz do dia despertou-me duma agradável noite de sono. Cá fora o sol brilhava por entre as poucas nuvens altas e uma agradável brisa amena convidava ao passeio.
Arrumámos o material e dirigímo-nos para Torres de Alcalá em busca do chá da manhã.
Chegados a Torres, seguímos a estrada junto ao pequeno oued até à beira do mar. A estrada terminava de uma forma surpreendente. Parecia um daqueles panoramas saídos das magazines de viagem. Num enorme pátio acimentado, amparado pelo mar de azul profundo e coroado por um céu sarapintado de pequenas nuvens acetinadas, pontuavam duas mesas de esplanada ladeadas por quatro cadeiras. Era algo intocável. Uma daquelas visões que gostamos de apreciar à distância: "Não mexam! Está lindo assim."
Estacionámos as motos junto ao mar na esperança de tomar o chá num café próximo. Estranhamente, o marroquino fechou o estabelecimento. Decidimos esquecer o chá e prosseguir. Continuámos pela pista sinuosa ao longo da linha costeira até estarmos praticamente em frente do rochedo espanhol de Penón de Velez de la Gomera.
O Penón está ligado ao continente através de uma ínfima língua de areia que o ancora numa praia idílica, na foz do oued El Ansor.
Estávamos perante o terminus da pista. Acabava numa trialeira, severamente degradada pelas chuvas e de acentuada inclinação, que ziguezagueava pela encosta abaixo até à praia. Percorri com o Quim, a pé, parte da trialeira para aferirmos da sua exequibilidade. "A furguneta passava! Uma roda aqui, outra ali..." - dizia. Mas decidimos não correr o risco. Os rasgos longitudinais profundos no pisco facilmente trancariam as rodas e mandariam-nos, com as motos pesadas, pela ribanceira abaixo.

Voltámos para trás até Torres, em busca de caminho para chegar aquela praia idílica. Percorremos pela estrada alguns quilómetros para Este em busca de alternativa. E não foi fácil encontrá-la. Por algumas horas, tentámos sem sucesso praticamente todas as pistas que divergiam em direcção ao mar.
Vales profundos intercalavam montes caprichosos, veredas apertadas sucediam as subidas pedregosas que, por vezes, causavam algumas dificuldades. A cadeia montanhosa que nos separava da costa mostrava-se inexpugnável.
Regressámos à estrada e continuámos na senda daquela praia. Alguns quilómetros adiante encontrámos finalmente a pista que nos levaria até lá.

Chegámos à foz do oued El Ansor. O Penón, lotado de bonitas casas caiadas de branco, ostentava orgulhosamente a bandeira espanhola em jeito de desafio aos militares marroquinos. Sedeados numa pequena barraca sobreelevada de onde vigiavam a praia e formalizavam a fronteira, observavam apreensivamente todos os nossos movimentos.
Na estreita língua de areia, botes de pesca repousavam à beira das àguas claras e translúcidas que banhavam a baía.
Num canto, junto ao Penón, uma pequeníssima ponte transpunha uma vala transversalmente escavada na areia. Ridiculamente, constituia a fronteira. Os quatro marcos brancos, dois em cada margem, exibiam tatuados as bandeiras da soberania em vigor.
Aproximei-me com a camara discretamente, pois estou bem consciente das sensibilidades marroquinas em questões militares e fronteiriças, mas duas dezenas de metros antes de alcançar a ponte o militar, que me observava com olhar de falcão, deu-me finalmente ordem de recúo.

Aproveitámos a espectacularidade e sossego do local para almoçar. Aqueci uma lata de feijão frade que acompanhei com atum.

Após o repasto, enveredámos pelo oued acima para evitar voltar atrás pelo mesmo caminho. Infelizmente, após poucos quilómetros o oued estreitava entre grandes pedras e não era possível progredir mais. Acabámos por regressar pela mesma pista e orientámo-nos para Este.
O Rif revelava-se cada vez mais luxuriante à medida que nos aproximávamos da localidade de Rouadi. Ao contrário do panorama que a rodeia, a localidade é totalmente desinteressante e partimos de imediato.
Estávamos agora a seguir uma rota do Gandini que terminava junto de Al Hoceima.
Durante toda a tarde, percorremos encostas, subimos e descemos trialeiras, atravessámos vales, aldeias e campos de cultivo. Por vezes divergíamos da rota e dávamos conosco a seguir carreiros pelo meio de searas verdejantes.
A cor da terra variava brusca e constantemente. Ao tom vermelho alaranjado, sucedia-se o lilás, violáceo, amarelado... uma paleta de cores garridas que desafiava a imaginação.

A poucos quilómetros de Al Hoceima o Tiago, que se queixava regularmente do estado da direcção, verificou que não tinha condições de prosseguir e decidiu que tinha de tratar do problema. Combinámos instalar-nos no camping e ele prosseguiu para a cidade. Nós continuámos pela magnífica rota do Gandini até ao fim, numa praia próxima de Al Hoceima.
Os guardas da praia convidaram-nos a ficar e montar acampamento mas, com o Tiago já instalado no camping, o convite teve de ser recusado.

Chegámos ao camping e já o Tiago tinha a suspensão da frente espalhada pelo chão. Formalizámos a nossa presença e, com uma certa dificuldade, reconstruimos a moto :) e montámos as tendas. O chão era autêntica pedra e só com a ajuda de calhaus consegui erguer o alojamento.
Na vizinhança do camping, um restaurante emanava música àrabe dum ambiente bastante animado. Rapimente atraiu as atenções do Ricardo que lá foi em busca de qualquer coisa para petiscar, talvez comida... :)
Eu dividi uma lata de salsichas com o Tiago e matámos o resto do serão à conversa.
O DJ do restaurante-bar lá sossegou finalmente e acabámos por ir todos descansar.

Amanhã deixamos o Rif. Fica-me na memória como um lugar indiscritível. Uma daquelas raras regiões onde, quando pensamos que já vimos de tudo e do melhor, o dobrar de um novo cume ou o contornar de uma nova colina nos revela a mais surpreendente das panorâmicas.
Merece, por si só, uma viagem dedicada de aventura e descoberta pois, se o fugaz olhar passageiro de um transeunte desvenda tanto pormenor e riqueza, que maravilhas ocultas ficaram por revelar?

Percurso do dia

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