terça-feira, julho 29, 2008

Olkhon

Acordo cedo. O Sol ergue-se preguiçosamente por detrás da nebulosidade espessa.
Por momentos pergunto-me se a chuva irá surgir e tentar comprometer o plano do dia: caminhar.
Relembro as palavras do Evren: «em Olkhon nunca chove!». Curiosamente, é quase verdade! Em Olkhon, chove muito pouco. Os valores anuais de precipitação são comparáveis a climas semi-desérticos, como o sul de Marrocos ou o Sahel no norte de África. Contudo nada nesta paisagem, verdejante e húmida, lembra tais locais.

A Kate ainda dorme. A esta hora da manhã, não se vê vivalma nas ruas de Khuzhir. Tanto melhor assim, ainda não começou o frenesim turístico.
Saio sozinho e dirijo-me calmamente para o cabo Burkhan. Conhecido também como rochedo Shaman(Xamã), este é um dos locais mais sagrados de toda a Ásia, venerado deste tempos imemoriais pelo Xamanismo como a residência do mais forte dos deuses celestiais (tengiies). Por isso, parece-me um bom local para se estar só.

Desço o promontório até às águas calmas do lago, sobre uma pequena praia de minúsculas pedras roliças. As poucas árvores, agora falecidas, estão adornadas com centenas de fitas coloridas, um dos elementos da prática do Xamanismo ainda bem viva. Pego na garrafa e encho-a pela primeira vez no lago. É fresca e incrivelmente cristalina. O sabor... enfim, nunca bebi uma água que me soubesse tão bem.
Sento-me num tronco à beira da água e demoro-me em pensamentos. Quanto vale um minuto destes?

O Sol rompe promissor por entre as nuvens altas, criando uma cortina de luz sobre a extensa praia a nordeste do cabo. É para lá que seguirei.
Regresso aos aposentos e a Kate já acordou. Tomamos calmamente o pequeno almoço, no Nikita's, e começamos a nossa jornada ao longo da costa.


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segunda-feira, julho 28, 2008

O Lago

9h30. Ouço ao longe o sussurro suave duma voz feminina que chama por mim. Durante algum tempo escuto inerte, anestesiado, sem reacção a este chamamento longínquo. Subitamente, emerjo desorientado sobre a cama estreita e desarrumada. Na penumbra, é a Nadia que chama por mim.
«Acorda Miguel. Vais perder a marshrutka!» - de movimentos amortecidos pelo álcool, reajo sem demora.

Arrumo a bagagem, agora espalhada pelo chão. Poucas horas antes, o quarto fora "invadido" por um novo grupo de hóspedes, acabados de chegar de Moscovo de madrugada. Dada a minha condição fisiológica nessa noite, tinha inadvertidamente deixado os pertences espalhados um pouco por todo o lado, principalmente sobre as camas vazias... agora ocupadas.
Procuro reunir tudo sem os incomodar. Sei o quanto devem precisar de uma cama imóvel e silenciosa.

No hall, a Kate luta com a mochila para conseguir acondicionar todos os seus pertences. Por mais que tentemos encontrar uma fórmula perfeita, o equilíbrio adequado entre conforto, necessidade e leveza, é sabido que estes têm uma tendência incontrolável para "dilatar", assim que confinados ao espaço exíguo de uma mochila. Por mais que tentemos viajar leves, os poucos itens imprescindíveis que seleccionamos acabam sempre por tomar todo o espaço.
Dou-lhe uma mãozinha a acondicionar o saco-cama dentro da mochila e, com esforço, conseguimos correr o fecho.

Despedimo-nos da Nadia e saímos em direcção ao coração de Irkutsk. Faltam 15m para as 11h, hora combinada para nos encontrarmos com o chauffer da marshrutka que nos levará a Khuzhir, na lendária Ilha Olkhon, em pleno Lago Baikal.
A curta viagem até ao Central Market, primeiro de autocarro, depois de eléctrico, custa-nos praticamente meia hora. Depois, por entre a agitação caótica de compradores e vendedores e a azáfama incessante das marshrutkas conseguimos, com dificuldade, encontrar aquela que por nós ainda esperava.
Eram 11h30. O chauffer, um caucasiano robusto, bem aparentado e na casa dos quarenta, acolhe-nos a bordo da sua moderna e confortável carrinha. Ainda estamos sós, mas não seria certamente por muito tempo. A curta distância que nos separava do terminal rodoviário foi percorrida sem mais demoras.
Já no local, outro russo centraliza a angariação de mais passageiros, turistas e locais, e foi preciso mais uma hora para preencher todos os 13 lugares da marshrutka. Cada passageiro paga 700Rb ao angariador. Nós, já tínhamos combinado 500Rb com o condutor. A Nadia tratou-nos bem.

Ao ritmo que o denso tráfego permitia, deixámos a centro de Irkutsk. Depois, os seus suburbios sombrios e delapidados, numa estrada bem asfaltada quase sempre rectilínea, até que nada mais que extensas planícies verdejantes, intercaladas por suaves colinas de taiga, preenchiam o nosso campo de visão. E que visão...

Mal consigo conter a ansiedade. Antecipo as cores, a atmosfera, o cheiro e as gentes. No rosto da Kate, vejo uma calma impaciente que me tranquiliza. Inunda-me o espanto e a maravilha que ainda estarei para sentir. O privilégio de poder aqui estar, deste ar respirar. Sinto-me como se regressásse a uma terra há muito prometida, onde outrora já havia estado. Em sonhos, talvez? Inegável é estar prestes a concretizar um dos sonhos de uma vida. É estranho, é familiar... é indiscritivel.

À medida que vencemos os quilómetros da P-418, e nos afastamos de Irkutsk, sentímo-nos cada vez mais perto daquela Sibéria rural e misteriosa, a terra do Baikal e dos xamãs, cuja magia e influência espiritual ainda ecoam nestas colinas e florestas. Em Bayanday, um pequeno vilarejo perdido nas bermas da P-418, viramos para Este, pouco depois acaba-se o asfalto e entramos no estradão de terra. Mas nem por isso a velocidade, ou o estilo de condução, se alterou.

A marshrutka "voa" sobre as corrugações do estradão. Por vezes, a trepidação é tão intensa que o chocalhar metálico dos componentes da viatura torna-se ensurdecedor. Aqui nada é poupado, tudo anda no seu limite. Uma imensa coluna de pó ergue-se atrás de nós. No céu, extensas nuvens aveludadas contrastam com o imenso azul. Neste carrossel de altos e baixos, curvas e contra-curvas, declives e inclinações, sentimos a cada momento que pouco mais que a gravidade mantêm esta marshrutka junto ao solo, como se esta planasse rasteira numa dança apressada e esguia, serpenteado pela massa continental a fora em direcção às profundezas abissais do grande lago.

Por vezes, por entre as verdejantes colinas que se erguiam no nosso caminho, vislumbrávamos fugazmente a imensidão azul do Baikal. O céu, tão imponente quanto altivo e intocável, parecia estender-se ao infinito, ampliando de tal forma a grandiosidade da Natureza que ninguém nesta marshrutka conseguia conter o único sentimento possível, libertando periodicamente um exclamativo uníssono... «wooow!!».

Pouco depois, chegávamos as margens do lago junto à localidade de Sakhyurta, no estreito que separa Olkhon do continente. No cais há marshrutkas, vários autocarros e muitos automóveis, que entopem a exígua entrada da plataforma de acesso ao pequeno ferry.
Apesar das inúmeras agências especializadas no ocidente, e dos pacotes turísticos transiberianos, Olkhon permanece pouco explorada e a afluência aqui ainda é fundamentalmente interna. Famílias inteiras chegam num ou vários carros, transportando tendas e mantimentos, prontas para se instalar ao longo das praias da ilha, em busca de umas agradáveis férias balneares. Estamos a milhares de quilómetros do oceano, em qualquer direcção. O Baikal é o que de mais perto se assemelha a um grande oceano, por estas vizinhanças.

Apesar da presença autoritária dos dois ou três elementos encarregues do embarque, envergando fardamenta camuflada, não se mostram muitos interessados em manter a ordem no recinto, o que conduzia a algumas exaltações e disputas enquanto as viaturas se iam apertando freneticamente.

Subo ao cume da colina adjacente e finto demoradamente aquele mar de águas doces e cristalinas. Do outro lado do estreito, a pouco mais de um quilómetro, um pequeno recanto da ilha serve de cais ao mini-ferry. A azáfama era semelhante. Pouco depois, uma coluna de fumo negro denunciava a partida da pequena embarcação.
Regresso ao cais e sento-me junto da Kate. À nossa volta, além das dezenas de veículos, há barracas improvisadas de madeira e tela plástica, a servir bebidas e comida rápida, indícios de uma crescente afluência turística ao lago. Tudo é temporário, sazonal, construído precariamente para aproveitar da melhor forma o afluxo extraordinário de turistas proporcionado pela curta época balnear. Dentro de poucas semanas, tudo regressará à tranquilidade, isolamento e frio gélido do rigoroso Inverno siberiano.

Pouco depois, o ferry chega e desembarca as viaturas e pessoas. Acorremos ao local, expectantes que o nosso chauffer consiga embarcar com a marshrutka já nesta viagem. Assim sucede.
De Verão, este pequeno ferry gratuito liga a ilha ao continente, proporcionando aos siberianos uma estância de férias acessível e, a muitos níveis, paradisíaca. Nos rigores do Inverno, o lago transforma-se, criando uma crosta gelada com cerca de um metro de espessura que permite aos veículos circulem sobre a sua superfície. Mas, de meados de Dezembro a meio de Janeiro, e de meados de Abril a meio de Maio, a Ilha Olkhon fica isolada do resto do mundo. O gelo fino e instável não permite a circulação marítima nem sustenta as viaturas, pelo que a única via de acesso à ilha - se a houvesse - seria aérea.
Os habitantes nativos, o povo Buryat, convivem com esta realidade desde sempre e de alguma forma tem sido este isolamento o principal responsável pelo estado (quase) imaculado e primitivo da ilha. A electricidade chegou muito recentemente, em 2005, trazendo consigo uma maior abertura ao turismo, o que começa a deixar algumas marcas na paisagem. Não existe processamento local do lixo nem infraestruturas de saneamento básico.(1)
A luz suave e amena deste fim de tarde projectam-se delicadamente por entre as nuvens, incidindo sobre o espelho translúcido das águas calmas. A bordo do "дорожник" (Dorojnik), aproximamo-nos lentamente de Olkhon, a terra sagrada dos xamãs.

Chegámos. Após o desembarque da marshrutka, reunímo-nos e prosseguimos viagem. Fizemos depois mais de três dezenas de quilómetros, através do estreito caminho de terra batida, até Khuzhir, a maior povoação da ilha com cerca de 1200 almas. Apesar do crescimento recente e da proliferação da oferta comercial, as habitações permanecem rudimentares, separadas das ruas de terra por elevadas cercas de madeira. A grande maioria da população masculina ainda se dedica à pesca. As mulheres encontraram novas ocupações ligadas ao turismo para aportarem um rendimento adicional, quer através da hospedagem, quer através da venda de artesanato.

Nikita. Este é um nome que toda a gente conhece nesta ilha. Nikita Bencharov é um antigo campeão de ténis de mesa russo que encontrou aqui a sua casa e o seu propósito. Desde então, tem sido a força motriz por detrás do desenvolvimento turístico desta povoação. Ele centraliza o turismo e distribui o benefício, alojando os recém-chegados no seu "homestead", ou em casas particulares, viabilizando o formato de alojamento e pensão indispensável à generalidade dos visitantes estrangeiros.

Dirigimo-nos ao "homestead", localizado na extremidade norte de Khuzhir junto da falésia. Já tinha falado com o Nikita dois dias antes, por telefone, dando conta da minha chegada.
No átrio da recepção, deparámo-nos com uma quantidade significativa de estrangeiros. Confesso que não esperava outra coisa. Mas, ainda assim, não pude deixar de ficar surpreendido com os números. O "homestead" estava cheio e, como uma chamada, fomos confirmados para ficar numa casa particular, no centro da localidade. A Tania fez-nos companhia e mimou-nos com a sua simpatia, enquanto nos conduziu pelas ruas enlameadas pelas recentes chuvas até à casa da nossa anfitriã. O tempo está fantástico. Olkhon e o Baikal saúdam-nos!

Um chocalho barulhento agita-se conforme empurro a pesada portada de madeira que nos separa do quintal. Uma babushka rechonchuda, de compleição baixa e forte, de rosto adorável e voz doce, dirige-se a nós. Cumprimenta-nos calorosamente.
«Kapitalina! Menya zovut Kapitalina!» - apresenta-se.
«Kate, Аvstraleeyskeey. Miguel, Portugalskeey!» - respondemos!
Mostra-nos os cantos da casa e somos ambos recebidos como parte da família. O marido da Kapitalina é pescador no Baikal. O filho adolescente ainda estuda, mas está de férias nesta altura e ajuda o pai.
Instala-nos num dos quartos recentemente erguidos nas traseiras. Também há um WC "natural" (uma fossa séptica), devidamente afastado da zona residencial, e também uma banya! Prometi a mim mesmo que teria de a experimentar.
Depois de instalados, regressámos ao Nikita's em busca de qualquer coisa para comer. Lamentavelmente, a sorte já não estava do nosso lado. Do Omul servido ao jantar, nem o cheiro! Apenas restavam algumas batatas cozidas que acompanhámos com umas fatias de pão.

São 22h e o Sol esconde-se apressadamente detrás das colinas que bordejam as margens aveludadas do lago. A atmosfera enche-se de tons de azul inéditos, manchados por um suave tom quente quase indelével, numa imensa paleta memorável do tamanho dos céus. Absorvo todo aquele momento, aquela grandiosidade, como uma esponja sedenta de humidade. A Kate permanece imóvel e serena, como que meditativa, sentada junto da falésia. Parece haver propósito em tudo isto, pois sinto-me em paz. Estou em paz.

São 23h30 quando me deito. Amanhã espera-nos mais um grande dia.



(1) Post-Scriptum: É, por isso, muito importante alertar os futuros visitantes para que não levem resíduos para a ilha, como plásticos e outras embalagens descartáveis, produtos potencialmente tóxicos e não bio-degradáveis que possam acabar contaminando o solo e o lago, bem como outros detritos, pois estarão a contribuir irremediavelmente para a destruição deste recanto único. Sendo este um cuidado que deve ser universal, reveste-se de ainda maior importância nestes lugares que, em certa medida, são oásis intactos deste nosso pequeno ponto azul.

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domingo, julho 27, 2008

E o Baikal ali tão perto...

Calei o despertador. Diversas vezes. Não que tivesse muito sono mas porque me sentia meio entorpecido. A vontade de me erguer do conforto do divan era nula e nem a infinita ânsia de chegar ao lago me conseguia mover dali.

Eram 11h quando, por fim, ganhei forças para me levantar. Ainda estava zonzo, a destilar. Arrumei a bagagem e, hora depois, despedia-me do pessoal. A Nadia dizia que, a esta hora, já não iria muito longe. Os autocarros para a Ilha Olkhon saem cedo. As marshrutkas, sempre antes do meio dia. Os 270kms que separam Irkutsk da ilha são longos. São necessárias 6 ou 7 horas de viagem.
Eu achava o mesmo, mas não me dou por (con)vencido sem tentar. Podia ser que encontrasse uma saída tardia ou uma boleia fortuita. Não podia era ficar aqui de braços cruzados, por mais que me agrade esta companhia! Parti.

Na Ulizta Lermontova esperei pelo 90. Chuviscava. Aproximou-se de mim um jovem russo em fato-treino. Falou comigo, presumo que a pedir dinheiro. Estava embriagado e fumava incessantemente. Estendeu um braço e exibiu a mão, onde só resta o polegar.
Demoro algum tempo a reagir. Ainda não tinha visto um russo a pedir activamente na rua. Geralmente prostram-se no chão escondendo o rosto, como sinal de vergonha. Mas este abordou-me. Não lhe quero dar dinheiro pois o fim parece-me óbvio.
"Ya ne govo'ryu po russki" - respondi, que não falo russo.
Ri-se e mantêm a retórica. Insistia em "ruble", procurando arranhar o inglês...
Passam-se vinte minutos e o autocarro não chega. O russo já tinha percebido que não se safava e estava resignado. Comprou uma lata de cerveja no quiosque ao lado e acendeu mais uma beata que encontrou no chão.
Eu também desisti do 90. Decidi apanhar um dos 80, que passam constantemente, e ver onde é que este vai parar. Segue o caminho do 90 e, quando me apercebi que divergia noutro sentido, saí na paragem seguinte. Custou-me uma caminha de 20 minutos à chuva para alcançar o destino: a gare dos autocarros.

Junto da gare concentram-se autocarros, marshrutkas e táxis. Autocarros para Olkhon só há 3 por dia e há muito que saíram. Dou uma volta pela ampla praça por onde se dispersam as marshrutkas e falo com os condutores. Hoje é Domingo e não há grande movimento. Ninguém parece ir na direcção da Ilha.
Os taxitas abordam-me e fazem os seus preços. "Doroga!" - exclamo insistentemente. Baixam o preço anunciado, mas continua caro. Outros dizem-me que não, é barato! Explicam-me porque acham que me estão a fazer um bom preço... :)
Outro taxista aborda-me e "oferece-se" para me levar por "apenas" 2000rublos.
"Ochen doroga! Pyat', OK. A'deen...doroga!!" (quatro pessoas... seria OK! Só eu... é caro!) - exclamo, enquanto gesticulo. Ele percebe perfeitamente e rimo-nos todos um bocado. Depois procura comigo uma marshrutka que me posso levar a Olkhon. Mas hoje já não tenho sorte, ninguém já vai sair para lá.

Fico junto à gare umas boas duas horas. Depois desisto e decido regressar ao hostel. Não posso dizer que esteja chateado. A noite passada tinha sido fantástica e tinha gostado muito da companhia. Em certa medida até estava feliz por não ter conseguido transporte.

O tempo continua desagradável. Está frio e chove insistentemente. As gotas parecem pulverizadas. Descem lentamente, rodopiando à vontade da brisa fraca. Apanho o "4" e vou até ao mercado chinês. Depois troco para o "1".
Junto à ponte, novo acidente entre duas viaturas ligeiras. O eléctrico não passa. Isto parece rotineiro. As pessoas levantam-se e evacuam. Não perdem um minuto a perceber o fim da viagem. Sigo-as.

Atravesso a ponte a pé. Do outro lado, decido apanhar o primeiro autocarro que aparece, o "25". Leva-me para norte, em direcção a Angarsk. Ao longo das margens do rio, estende-se a indústria ligeira que emprega as populações.
Em Novolenino desço do autocarro e dirijo-me a um quiosque. Meia dúzia de pessoas aguardam junto da paragem. Compro uma garrafa de água e sento-me junto da bagagem. Olhavam-me e comentavam. Obviamente, teriam curiosidade em saber o que andaria um estrangeiro a fazer por ali. Talvez comentassem que só poderia andar perdido e desorientado.
Não. Nem perdido nem desorientado. Se tivesse que me descrever enquanto transeunte, talvez disse-se, metaforicamente, que sou dos que preferem caminhar por becos e travessas, ao invés de praças e avenidas. Gosto de ver como as coisas são, não como me as querem mostrar.

Fico por ali a observar o movimento de pessoas e viaturas. E a ser observado. Chuvisca e tenho os pés encharcados. Já não faz diferença.
Por volta das 15h, decido-me a regressar ao hostel. Apanho um autocarro em sentido inverso e saio junto da ponte. Depois, sigo de "80" até ao hostel.

A Nadia recebe-me com um sorriso sarcástico. Ficamos à conversa até chegar o Evren.
A Nadia diz-me que pode arranjar reservas numa marshrutka para Olkhon. A passagem custa 500Rb. É razoável e não penso duas vezes. Com um telefonema confirma o lugar.
Pouco depois, a nossa conversa animada resgata a Kate do sono profundo. Também quer ir para o lago no dia seguinte. Mais uma chamada e estamos agendados para sair às 11h da manhã, do mercado chinês. Amanhã, finalmente, chego às margens do imenso Baikal!

Vamos ao supermercado. Quero cozinhar algo lusitano mas nas prateleiras não encontro o que procuro. É curiosa a disparidade nos nossos hábitos de consumo. Com excepção dos produtos estereotipados, como as bebidas, os snacks, a fruta e vegetais importados, é uma aventura descodificar os conteúdos das embalagens.
A Kate é de uma espécie vegetariana :) , come ovos e não se importa de comer peixe. Pensei em Bacalhau à Brás... mas bacalhau aqui, nem o cheiro! Só há algum peixe seco ou congelado e quase sempre é arenque ou omul, o peixe do Baikal.
Procuro alternativas mas falta sempre algo essencial.
"How about tuna?! Como na FAINA!!!" - a Kate não percebe...

Passados muitos minutos de intensa persistência, a Kate lá descobriu uma lata de atum no meio de centenas de latas de conserva! Um feito extraordinário!!
Parece-vos simples? Tentem descobrir uma lata com atum no meio de dezenas de outras latas diferentes, sem imagens do conteúdo e descrições em russo! A nossa sorte foi que "atum", escreve-se com qualquer coisa parecida com "tuna" em muitos dos idiomas. Não nos enganámos. Em russo é
тунец!

Para o jantar servi batatas cozidas com feijão branco salteado em molho de tomate, acompanhado de pasta de atum com ovos. Não é muito sugestivo nem tão pouco elaborado... mas agradou aos comensais!
Partilhámos ainda do "excelente" vinho russo que os nossos amigos mais maduros tinham comprado. Para quem já não é grande "connaiseur" quando ele de facto tem qualidade, só posso dizer que este era simplesmente horrível! Desconfio até que haviam por ali derivados de petróleo à mistura, tal o odor sintético e gosto intenso a plástico. Não o usaria nem para temperar carne!

Mal tive tempo de levantar os pratos e já a garrafa de vodka estava sobre a mesa. O que se seguiu dispensa comentários.
Não tenho noção das horas a que me deitei.


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sábado, julho 26, 2008

Irkutsk: no coração da Sibéria

Está a chover e abandono a composição. Percorro o extenso cais em direcção à saída. A agitação é enorme. Centenas de pessoas concentram-se sob os alpendres e salões da ampla estação de Irkutsk. São muitos os que esperam passageiros e mais os que aguardam o seu comboio.
Curiosamente, o WC tem portaria. Consigo descodificar as instruções da porteira e encontrar o depósito de bagagens, onde me desfaço da mochila por 54 Rublos. Não pretendo 24h... mas é a fracção disponível.
Saio para a larga rua alagada e procuro "sintonizar-me" com os transportes. Há táxis, há carrinhas de 9 lugares em serviço colectivo(com lotação aparente de 20 pessoas), há eléctricos e autocarros. Como funciona o tarifário, eu ainda vou descobrir...

Do outro lado da rua, erguem-se dezenas de pequenos quiosques que vendem mercearias ao passageiro menos preparado. Na esquina há um snack-bar de aspecto moderno. Entro e verifico que servem refeições ao estilo cantina. Pego num tabuleiro e percorro a curta bancada, sondando as prateleiras e as suas enigmáticas iguarias. Decido-me por uma sandes de "qualquer coisa" e peço também uma tijela de borsch, um café instantâneo (má decisão, como é de esperar) e um refresco. Sento-me junto de uma das paredes vidradas e observo.

A quantidade de homens desocupados ou, pelo menos, ocupados com uma garrafa ou lata de cerveja é grande. Há alguns já bastante embriagados a deambular erraticamente, molestando as pessoas. Fora o típico burburinho e azáfama dum local desta natureza, tudo parece tranquilo e normal.

Sei que não é fácil arranjar bilhetes daqui para a Mongólia sem alguma antecedência. Decidi comprar logo o bilhete para Ulan-Bator e evitar percalços de última hora. A funcionária da bilheteira internacional, numa sala com ar condicionado e sofás luxuosos no primeiro andar da estação, não sabe inglês mas entende perfeitamente o meu código pictórico escrito.

Já com o bilhete guardado, resolvo avaliar os transportes locais. À saída da estação acaba de se imobilizar um eléctrico degradado, em tudo semelhante aos de Varsóvia, com ar de pouca ou nenhuma manutenção nas últimas décadas. Entro no meio da multidão apressada e vejo quanto e como pagam.
Enfiam uma nota de 10 Rublos pelo orifício junto do guarda-freio, que devolve um pequeno bilhete de papel. "OK! Isso faz-se!" - penso. Mas teria agora de praticar...
Entro para a "lata" junto com os últimos do extenso pelotão e fico apertado mesmo junto do tal orifício. Compro o bilhete e guardo. De imediato me tocam nas costas e vejo um caucasiano de meia idade a estender-me uma nota de 50 Rublos. Só poderia significar uma coisa (acho eu...). Devolvi o bilhete e o troco.
"Pyat!!" - exclama, com aquele ar irritado de quem repete algo não ouvido à primeira. Deu jeito já saber contar em russo... Devolvo-lhe os restantes quatro bilhetes.
De imediato chega mais uma nota. Depois, outra... e mais outra. Em poucos minutos estávamos todos a sorrir uns para os outros. Eu estava deliciado com a situação!

Após um par de paragens há mais espaço e "demito-me" da minha função. Vou para o meio do eléctrico e vejo que o procedimento é mais complexo: há que introduzir o bilhete de papel fininho na ranhura duma pequena maquineta de obliterar e pressionar energicamente uma alavanca. Isto faz com que o bilhete fique completamente esburacado! Cinco segundos depois tinha uma russa alta e encorpada, de traje casual e pose formal a dirigir-se a mim. Não entendia o que me dizia, mas quando olhei para o crachá no seu peito percebi o que queria. Uma fiscal. É uma "pica"!
Avaliou o meu bilhete e devolveu-mo. Parece que passei no teste do eléctrico!...
Ainda agora não sei o que teriam aqueles furinhos todos de tão especial que os distinguissem de quaisquer outros furinhos de qualquer outra viagem. Talvez nada. talvez não seja preciso distinguir. Talvez não hajam assim tantos prevaricadores ou, num eléctrico lotado, não teriam passado tantos rublos por mim em direcção àquele pequeno orifício. Talvez nem fosse necessário haver fiscal, nem papelinhos furados! Talvez seja mesmo assim que as coisas funcionam nesta terra de "criminosos exilados".

Atravessámos a longa ponte para a margem direita da cidade e, já na Ulitsa Lenina, desci do eléctrico. Procurava um internet café para sossegar algumas almas e aliviar os cartões de memória. Se houvesse tempo, despejava também alguns pensamentos no Ponto.
Trouxe dois guias. Não por redundância, que de facto são em grande parte, mas para desempate. O conceito, se calhar, é estranho. A minha ideia é manter uma viagem democrática, principalmente quando ando por locais desconhecidos. Por isso, preciso de mais 2 opiniões! Assim, somos três! Em caso de dúvida, há referendo. Consulto ambos os guias e avalio a minha própria apetência... e ganha a maioria!
Mas, como disse e é natural, ambos os guias possuem muita informação em comum, pelo que mantenho uma democracia "por conveniência" para evitar não perder nem a espontaneidade - sem a qual não se pode realmente viajar - nem os motivos de interesse, nem as recomendações sempre úteis de alojamento. Este último um assunto deveras obscuro, principalmente às dez da noite numa qualquer localidade pequena e esquecida neste mundo...
Tudo isto para dizer que os guias também podem ser péssimos conselheiros... principalmente quando desactualizados. Sob a chuva intensa, percorri toda a cidade em busca dos quatro netcafés que ambos os guias totalizam. No seu lugar encontrei diversos serviços como uma agência de trabalho temporário, conforme percebi após ter entrado apressadamente pela porta, encharcado, e ter deixado as quatro jovens russas a rir quando lhes disse várias vezes "internet" a apontar para os PCs sobre as secretárias... até que, por fim, uma exclamou sorrindo: "Don't know!!".
Outra das vezes, entro num hall estilo Motel onde num sofá "vintage" se estendia um imenso caucasiano fardado de segurança. Virei as costas apressadamente e saí de fininho! Nos restantes dois endereços, nada mais que portas ferrugentas e encerradas encontrei. Posto isto, estava convencido que todos os siberianos teriam "net" em casa...

11h30: Ainda não tinha alojamento para a noite. Imaginam para onde me virei? Pois é... não se pode viver com eles, não se pode viver sem eles! Agora só precisava de encontrar um telefone público que funcionasse!!...
Decido por fim seguir para a estação de comunicações da cidade que, supus, fosse algo mais duradouro e que pudesse sobreviver a uma edição revista dum guia!!
Claro está, não cheguei ao destino. Andava já pelas ruas secundárias, farto de passar tantas vezes pelas mesmas avenidas, quando esbarro num estreito e obscuro acesso a uma cave. Num cartaz pouco vistoso afixado na parede, lia-se:
Интернет. Suponho que o meu cirílico por esta altura estaria já muito melhor, pois na minha mente soou imediatamente uma campainha. Internet!!
Completamente ensopado, desço os estreitos e imundos degraus da escada.

A cave eé exígua. Os mais de 20 computadores garantem também uma atmosfera quente e abafada. Não terá mais do que sessenta ou setenta metros quadrados. Olho em redor e dirijo-me ao jovem recepcionista:
-"Priviet. Internet, pojalusta?" - pergunto se posso usar a internet.
-"Da... dva!" - responde, indicando-me a máquina 2.
Instalo-me e carrego umas fotos. Sem surpresas, a ligação é tão lenta que impossibilita grandes uploads. Não carrego mais do que 10 fotos andas de desistir da empreitada.
À minha volta há sete ou oito adolescentes a jogar online. Exclamam e saltam gargalhadas. Não percebo o que dizem mas sinto-me aqui bem. Também não tenho pressa. Chove lá fora e as calças fumegam-se nas pernas.

Aproveito e tento escrever mais qualquer coisa aqui no ponto. A cabeça está cheia, a estourar de eventos, impressões e sentimentos. Não consigo destilar isto... é preciso tempo. O tempo ajuda a refinar o importante. Eventualmente, sobrará o essencial. E assim seleccionamos todas as memórias. Vou ao fórum Nomad's e deixo uma mensagem aos amigos:

Bem, dei aqui o saltinho so' para agradecer as mensagens que me tem enviado. Quando posso, vou recebendo/lendo e e' deveras agradavel perceber que ha' por ai' quem acompanhe estas coisas! Perdoem-me nao responder! Eu sei que voces sabem que eu fico agradecido! ;)

Estou em Irkutsk, na Sibe'ria, junto do Lago Baikal para onde irei amanha. O tempo esta' pessimo!

Atravessei um terco deste planeta em 4 noites, e sinto-me mais vivo do que nunca! Mas la' chegaremos... por agora, consegui deixar mais algumas palavras la' no ponto (que e' mesmo, mesmo pequeno :) )!


Faço uma pesquisa por alojamento no Google. Estou aborrecido com os guias! Saltam dois ou três resultados óbvios em resposta a "hostel+irkutsk". O primeiro, o Baikaler Hostel, está cheio. Tento o segundo, o Baikal Hostel (nomes originais, hum?). Tem cama para mim e fica um pouco afastado do centro, na margem esquerda do Rio Ankara. Não tem problema, continuarei a minha avaliação aos transportes públicos locais.

Deixo o netcafé por volta das 16h00. Já não chove, embora o céu permaneça tão sombrio como antes. Desço a Karla Marka e depois a Lenina. Quero apreciar melhor as principais avenidas sem ter de semicerrar os olhos por causa da chuva. Há bancos, museus, jardins, quiosques, escritórios, restaurantes, lojas de vestuário moderno. Nas ruas caminham pessoas alegres, bem aparentadas, de todas as idades. Os edifícios apresentam uma traça clássica, sóbria, robusta, de 5 ou 6 andares. Imprimem uma dimensão sólida e austera, mas grandiosa, à cidade.
Deixo-me levar pelas avenidas até junto da Ponte. Atravesso uma vizinhança mais degradada. As moradias isoladas estão em ruínas e a madeira dos portais e janelas está podre e esburacada. Os pátios, outrora ajardinados, são agora mato denso. Não se vê vivalma. Tão perto do centro, tão longe do mundo.

Apanho o eléctrico para a outra margem. Ao chegarmos à entrada da ponte, parámos. No sentido contrário, outro eléctrico abalroou um automóvel. A polícia já está no local mas não parece que esteja a desembaraçar a situação. Os intervenientes exclamam e esbracejam como se nenhum estivesse disposto a admitir a culpa. O trânsito, de alguma forma, passa pelo embaraço como farinha por uma peneira. Já os eléctricos terão de aguardar o desimpedimento da via...

Desço na estação e resgato a bagagem. Pelo telefone, a simpática recepcionista tinha-me instruído a caminhar uns 200m para sul, depois virar à esquerda para a praça, de seguida apanhar o autocarro 90, depois seguir até à Mikro... mas era informação a mais! 90... é tudo o que preciso saber (afinal tenho um guia... com um mapa).
Saio da estação e sigo a pé ao longo duma estrada densamente esburacada e lamacenta. Procuro esquivar-me às enormes poças e, ao mesmo tempo, fintar os carros que levantam autenticas torrentes de lama sobre os passeios... não há a menor delicadeza para com os peões.
Ao fundo da rua, vejo autocarros passarem frequentemente. Interpelo uma senhora de meia idade e pergunto-lhe pela paragem de "aftobusa" ao mesmo tempo que escrevo 90 na palma da mão. Não compreende e repito. Outra vez. A indiferença inicial deu lugar a um sorriso caloroso e uma descarga de direcções (em russo, claro...) até à paragem de autocarros mais próxima! Por vezes, parece-me que ficam totalmente convencidos que os compreendo perfeitamente... enfim, no meio do discurso lá dissequei o atalho enlameado que deveria tomar.
Cerca de 1km depois, chego a uma praça onde alguns tendeiros ainda tinham as bancas montadas. Ao centro há um jardim. Quer dizer... árvores! Algumas pessoas estão por ali a conviver. Aproximo-me delas para mais uma dose de interacção quando... passa um autocarro. Na esquina da rua adjacente, está uma paragem. "Deve ser ali..." - e sigo para lá.

Táxis, marshrutkas (como chamam aqui aos minibus) e autocarros vão passando. Eis que, por fim, chega um "90"!
Subo a bordo e tento decifrar a tarifa. Entrei sozinho e, portanto, não pude ver como se processa. Olho em redor em busca de uma referência. No chão, junto do condutor, está uma caixa de papelão cheia de notas e moedas. A maioria são de 10rublos... Estendo uma destas ao motorista. Pegou na nota e deixou-a cair dentro da caixa. Não olhou para a nota. Nem olhou para mim. Nem pestanejou.
Sigo para um lugar vazio. Passei no teste do autocarro!
Agora, só precisava de encontrar a paragem correcta...

Ulizta Lermontova. A larga e rectilínea avenida estende-se por vários quilómetros ao longo da margem esquerda do Rio Angara. Sabia que tinha de sair algures junto ao número 136. Os edifícios de apartamentos sucedem-se, irregulares, intercalados por recintos arborizados, pracetas de estacionamento, estradinhas, estações de serviço, armazéns e escritórios. As suas fachadas são amplas, em tijolo de barro, com largas janelas e marquises fechadas. Consigo acompanhar a numeração até perto do 86, depois perco as referências.
Os russos não numeram as portas, apenas os edifícios. Independentemente destes se assemelharem a um único ou a vários concatenados. Para "simplificar", nem todos exibem os respectivos números... e por vezes só há numeração nos extremos do quarteirão.
Sei que estou perto... mas o "perto", nesta avenida, pode significar uns quilómetros de caminhada. Espero mais um par de paragens e arrisco.O autocarro imobiliza-se. Pela janela vejo o reclame no rés-de-chão de um edifício: "Mikrochirurgia Glaza". Ecoam-me na mente as palavras ao telefone. É esta! Em dois segundos saltei do autocarro.

Após algum "sobe e desce a avenida" lá encontro o 136, um edifício jovem, sobre-elevado e de fachada avermelhada. Dou a volta pelas traseiras e localizo a entrada atrás duma larga porta de ferro.
Toco à campainha do hostel. Da marquise contígua, vejo espreitar uma jovem de olhos profundamente azuis, longos e lisos cabelos loiros.
"Miguel?" - pergunta.
"Da!!" - respondo entusiasticamente!
"We're expecting you!" - responde com um acolhedor sorriso.
Passados uns segundos soava o trinco eléctrico da porta.

Entro no apartamento, pouso a bagagem e descalço-me. Dou uma volta pelas divisões para conhecer os "residentes". Há um grupo de três inglesas que está mesmo de saída. Vão para Ulan-Bator. Sentados em torno da mesa da cozinha está a Nadia, a recepcionista do hostel; a Kate, uma australiana a viajar pelo SW asiático; o Evren, um cipriota exilado na Letónia e uma amorosa "avozinha" francesa de 60 anos, que acaba de terminar uma missão de 2 anos na Mongólia. Recebem-me como se nos conhecêssemos há décadas. Conversamos demoradamente, até eu me lembrar de que não tomava banho há 5 dias... devia tresandar. Os meus novos amigos, provavelmente, tiveram a delicadeza de não reparar.

Tomo um banho demorado e regresso ao convívio acolhedor do grupo. Já tinha saudades de companhia.
A Kate é jornalista, tem 27 anos e demitiu-se recentemente para tornar a viver. Há dois meses que viaja pela China e Mongólia. Prepara-se agora para ficar um mês na Rússia. Depois... logo se vê.
O Evren é um "faz-tudo". Faz o que pode e quer, desde trabalhar em bares e cuidar de crianças em acampamentos de Verão até trabalho comunitário e voluntário. Agora vive em Riga. É originário do Chipre mas deixou o seu país há 2 anos por divergências com a ocupação turca. Diz que jamais cumpriria o serviço militar por um país que não é o seu. Para o Estado cipriota turco, é um desertor. Nessa condição, apenas pode permanecer no Chipre 3 meses por ano e tem de pagar uma multa de 3000£. Nunca mais voltou. Compreendo e admiro a sua coragem.
Vai para a Mongólia nos próximos dias, depois para a China e regressará a casa via Hong-Kong. Como eu.

Juntam-se a nós um galês de 50 anos e uma adorável londrina de quase 70 (setenta) anos!! Falamos sobre o mundo, os povos, as culturas e política. Falamos sobre a vida, a já vivida e a que ainda temos para viver. Sobre o passado e sobre o futuro. Pois o nosso presente é este, o momento onde nos encontramos ali juntos, em torno da mesa duma cozinha, decorada com um imenso mapa da federação que ridiculariza as dimensões da Europa, num apartamento exíguo em Irkutsk, junto do eterno Lago Baikal neste remoto recanto do globo a que se chama Sibéria. Agora estou integro, indivisível, uno, imenso e coeso. Estou completo, cheio de sonhos ali tão perto, sinto que consigo estender uma mão e envolver a Terra, fervilho de vida. Não quero mais nada, só preciso disto. Sinto-me livre e à solta. É isto que eu mais desejo para mim.

A noite é longa em torno das garrafas de vodka. Divertidos, comemos zákusky e bebemos mais. Saboreamos omul fumado, queijo e salsicha. Passa das seis e meia da manhã quando me deito. O despertador tocará às 10h.


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A Transiberiana: parte 4

07h20: Acordo antes do toque do despertador. A noite foi mal passada pois não usei os tampões para os ouvidos.
Lá fora o tempo está horrível. Hoje ninguém deve ver o Sol sobre o Baikal. Chove esporadicamente.

Atravessamos uma ponte sobre o poderoso Rio Angara, um afluente do Ienissei e o único rio que nasce das águas do Lago Baikal.

Chegámos agora a Usolye-Sibirskoye(KM5124). Esta é a cidade que produz mais sal em toda a Sibéria. Tem também a maior fábrica de produção de toda a federação.

08h15: Estamos em Angarsk, cidade que vive da refinação de petróleo. É possível ver enormes torres de destilação, flares e chaminés a despejar espessas colunas de fumo sob o céu carregado. É como se o próprio céu tivesse saído das mesmas entranhas.

A partir do cais da estação, vejo uma longa estrada estreita e esburacada que atravessa um parque florestal até ao aglomerado populacional. Não vislumbro mais nada.

Vou ao vagão-restaurante mas não me servem nada. "Group...eat." - é tudo o que me sabe dizer a assistente. Olho em redor e só vejo turistas. Suponho que, como não faço parte de um "group", não tenho direito a "eat"...

Os passageiros e bagagens já se amontoam nos corredores e junto das entradas. Após quatro noites a bordo, suponho que a generalidade das pessoas esteja desejosa de chegar à estação. Com este tempo, eu não tenho grande pressa.

09h40: Chego a Irkutsk.



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sexta-feira, julho 25, 2008

A Transiberiana: parte 3


9h00: Acordo em silêncio e imobilidade. Estamos parados. Salto da cama e, em simultâneo, o comboio reinicia a sua marcha. Já não consigo ver onde estamos mas, por cálculos grosseiros, talvez nos arredores de Mariinsk. Pouco depois, a passagem da ponte sobre o rio Kiya confirma.

Já me acostumei ao conforto e silêncio do meu compartimento "privado". O #10 é uma composição moderna e eficiente. Todas as carruagens, não só as Spalny (1ªclasse - 2 camas, em alguns comboios também com WC), mas também as Kupé(2ºclasse - 4 camas) e as Platskartny(3ºclasse - camarata) são bem isoladas, inclusivamente com recurso a vidros triplos, o que garante uma temperatura agradável no interior - mesmo nos rigores do Inverno - e um nível de ruído aceitável.

Ao longo da linha, centenas de operários observam a passagem da comboio. Parecem estar apenas a socializar. Se o fazem apenas enquanto passamos, então será interessante que não o façam com todas as composições pois, ao ritmo com que o trânsito ferroviário circula por estas bandas, bem podem gastar todo o dia a ver passar comboios!

Há um "mito" ou, pelo menos, uma ideia generalizada entre as pessoas que já ouviram falar da Transiberiana que importa clarificar. Primeiro, não são muitos os que já ouviram sequer falar desta (imensa) parte do mundo. Para a maioria, a Rússia continua envolva numa cortina de fumo (ou será ainda de ferro?) que não ousam penetrar nem, tão pouco, estão minimamente interessados ou motivados.
Para os poucos que efectivamente já leram ou ouviram falar sobre este itinerário, a grande maioria está convencida que se trata de um comboio que, há imagem do famoso (e extinto) Expresso do Oriente(que cumpria uma ligação regular entre Paris e Istambul), faz a ligação entre Moscovo e o Extremo-Oriente. São ainda mais raros os que sabem efectivamente onde o tal comboio termina a viagem...
Isto é uma concepção totalmente errada.
Na verdade o que existe é uma linha ferroviária, entre Moscovo e Vladivostok (cidade portuária russa no Pacífico), a que chamam de Transiberiana, e que, com os seus quase 9300km de extensão, é efectivamente o mais longo caminho-de-ferro do mundo. Esta linha tem, a certo ponto, duas variantes que divergem com direcção a Pequim, capital da China. A primeira, a Transmongoliana, ruma a Sul logo após o Lago Baikal (em Ulan-Ude). Atravessa as inesquecíveis estepes mongóis, passa pela capital Ulan-Bator e segue para Sueste, através do Deserto de Gobi, até à China. A segunda, a Transmanchuriana, diverge da Transiberiana mais a Este e atravessa a fronteira na província chinesa da Manchúria.
Todas estas linhas são servidas por centenas de comboios, em milhares de serviços distintos. Passageiros, matérias-primas, mercadorias importadas e exportadas, este é o cordão umbilical da federação e, muitas vezes, a única forma de locomoção das populações. Não é um serviço turístico como muitas pessoas pensam quando se deparam com os pacotes caríssimos nas agências da especialidade. Viajar na Transiberiana é como viajar em qualquer outro país, como Portugal. Podemos chegar a uma estação, escolher um destino, comprar uma passagem e embarcar! A grande diferença reside nas possibilidades: em nenhum outro país do mundo podemos passar, numa mesma viagem, mais de uma semana dentro de um vagão sempre em movimento. E percorrer 8 fusos horários... um terço da superfície terrestre. É este o fascínio deste itinerário. E a razão porque faz parte do imaginário e dos sonhos de qualquer viajante.

O comboio é como uma cápsula. Viajamos pelo Universo, no Espaço-Tempo. Entramos e acomodamo-nos. Despimos as roupas tradicionais; vestimos os pijamas, os fatos de treino, os calções desportivos, as ceroulas e os robes. Descalçamos os sapatos e as botas; andamos agora descalços ou usamos chinelos de couro, havaianas, socas de madeira e sandálias de borracha, com peúgas ou não. Deixamos os preconceitos e formalidades lá fora. “Fazemo-nos” em casa.
A bordo, o tempo é passado a conversar, a beber chá, a ler, a comer, a observar, a fotografar, a escrever, a reflectir, a planear, a rir, a gritar, a correr, a cantar, a descobrir, a sorrir, a brindar (há cerveja e vodka, muita vodka), a passear pelos corredores, a aguardar pacientemente nas filas do WC, e - a maior parte do tempo - a dormir.
Estranho este balançar rítmico que nos faz dormir. E não há sono que nos valha, há quem passe 16 horas pelas brasas.
Vários dias depois saímos a muitos milhares de quilómetros do inicio. Perdemos a noção de onde estamos, das horas que são, do tempo que passou... e concluímos que Einstein tem toda a razão: viajando neste Universo, deformámos o Tempo.
Fica-nos na memória um sonho de belas paisagens verdejantes; de infinitos espaços abertos, cobertos de "ouro" ondulante subjugado à suave brisa do vento; de fantasmas cinzentos da era soviética, perdidos por entre ténues colinas da Taiga; da superfície surreal dum solo líquido, de imensos campos pantanosos; dos riachos vestidos de algas. Aqui e ali, uma ou outra cabeça de gado.

10h30: Durante poucos quilómetros atravessámos uma região mais acidentada. As colinas são proeminentes e há vestígios de exploração mineira. Há escórias e carvão.
O terreno reassumiu o seu perfil plano e abriram-se infindáveis campos de cultivo.

11h40: Parámos em Achinsk(KM3917), após passagem pela ponte sobre o Chulin. A paisagem junto ao rio é avassaladora: uma margem está ao nível das águas enquanto a outra, a pouca distância, se ergue uma centena de metros formando o planalto onde se situa a localidade.

A geografia tornou-se mais agreste. Há mais montes e vales, estreitos e obscuros. Predomina a Taiga.

12h55: O comboio serpenteia agora por entre montes muito acentuados.

13h25: Estamos ao KM4028 e a subir lenta e acentuadamente por entre um vale densamente florestado.

Continuamos a subir e só há espaço para uma linha. O maquinista buzina incessantemente. Por vezes descrevemos largos "S" e viajamos para Oeste.

13h40: Terminámos a portela. Mudamos de linha e já aguarda uma composição de mercadorias em sentido inverso para entrar neste troço.

14h25: Chegámos a Krasnoyarsk. Na estação renovada, inaugurada em 2004, exibe-se uma locomotiva a vapor. Um verdadeiro monstro metálico. Saio da estação e vejo-me numa ampla praça com várias fontes ornamentais no centro. Fervilha de vida. Há dois casais de recém-casados e convidados por todo o lado. Tiram-se fotos a rigor, como a ocasião exige. Numa das extremidades da praça, uma enorme parede de um edifício exibe um mosaico com a imagem de Lenine, por entre heróis populares e ícones da revolução. Está bem conservado e é, sem dúvida, bonito. Dou a volta ao largo por entre as pessoas. Há gargalhadas, sorrisos, as crianças correm e puxam-se. Ninguém dá por mim. Como eu gosto.

Atravessamos o Ienissei. Este extenso rio divide tradicionalmente a Sibéria em duas metades desiguais. Nasce no norte da Mongólia e desagua no Oceano Árctico. Com um curso de mais de 5200Km, é o sexto maior rio do mundo. Para quem vai para Este, o rio marca por isso o fim da chamada Sibéria Ocidental. Estou agora na Sibéria Oriental!
A margem direita do rio é uma movimentada zona portuária. Mais afastados, edifícios cinzentos e deslapidados ornamentam as amplas avenidas. O trânsito é caótico. Que contraste com a imensidão natural e "desumanizada" da Sibéria selvagem.

Nos subúrbios, regressam as moradias de madeira em pequenas parcelas de terreno cultivado. As colinas estendem-se agora despidas, num verde intenso. Nos vales, por entre as casas, quase sempre corre uma linha de água. Ao lado, trilhos gémeos estreitos improvisam as ruas.

As florestas são agora tão densas que as tomaria por impenetráveis. Surgem clareiras onde se concentram algumas casas. Passa-me pela cabeça... "há quanto tempo nada muda por aqui?". Parece que estou muito longe de todo o resto do mundo. Sem esta linha, este lugar não existia.

"Que vista fantástica... deixa ver se consigo tirar esta fotografia" - repentinamente, vegetação serrada ou composições em sentido contrário encobrem a visão - "Claro que não! Estou na Rússia!!".
De alguma forma, uma grande parte dos russos cresceram sob o signo do sigilo. Um sigilo imposto por uma sociedade em que expressar ideias e emoções em público foi motivo de perseguição, exílio e morte.
Os tempos são outros, certamente. Contudo, não se muda uma sociedade num dia. Muito menos uma sociedade tão complexa como a russa, com os problemas e dificuldades que ainda hoje pairam sobre os seus membros.
Sempre ouvi, com desconfiança, as coisas que se pensam e dizem sobre as pessoas. E no ocidente sempre se falou deste povo, quase sempre pelos piores motivos e muitas vezes com desagradáveis conotações.
Não sei onde estão esses indivíduos rudes e taciturnos que tanto ameaça(ra)m o "estilo de vida ocidental". Ter-se-ão extinto com a Perestroika? Nunca saberei. Mas posso-vos garantir que não encontrei nenhum no meu caminho. Muito pelo contrário!
São efectivamente pessoas reservadas... mas que procuram confiança. Sentindo, abrem-se e revelam-se seres humanos calorosos e hospitaleiros, ao nível dos povos mais ternos, cultos e abertos com quem já tive oportunidade de conviver.
Não tenho a menor dúvida: sou bem-vindo aqui. E vou voltar.

17h00: KM4250. Continuamos a subir amplas colinas. Há campos cultivados e horizontes a perder de vista. Os céus arqueiam sob a incomensurável imponência do azul. Nunca tinha visto o céu abater-se de tal forma sobre o horizonte. Nunca tinha visto um azul assim. É lindo!

17h15: Chegámos a Zaozyornaya. Paramos apenas um minuto.

18h28: Há algum tempo que percorremos um amplo vale. As colinas mais próximas parecem a mais de 10km. Há poucas vegetação e vislumbra-se alguma indústria pesada e as tradicionais moradias um pouco por todo o lado. Para Este, para onde nos dirigimos, o céu está carregado e sombrio. Nuvens escuras e compactas auguram mau tempo.

Parámos na estação de Kansk-Yeniseysky(KM4343). Começa a chover.

19h15: Paramos em Ilanskaya(KM4376). O local desta vila foi escolhido pelo famoso navegador dinamarquês Vitus Bering, numa das suas viagens de exploração ao extremo-oriente siberiano, ao serviço do Império Russo.
Desço da minha carruagem e caminho pelo cais improvisado. A estação está a ser remodelada e este não passa ainda de um monte de terra e cascalho onde repousam os futuros postes e suas sapatas. Ao longo do cais, dezenas de vendedoras exibem os conteúdos fumegantes de tachos e panelas, tupperwares e travessas, cestas e sacos. Há frango assado e estufado. Há batatas cozidas com ervas aromáticas. Há sopa de verduras. Há pelmeni com fartura. Vejo também folhados, enchidos e salgados. Também há churros, doces, pão e fruta. Não falta bebida. Não falta nada.
Os passageiros rodeiam as vendedoras e começa a azafama da troca: rublos por calorias. Detenho-me da minha deambulação errónea pelo cais. Paro e observo a multidão frenética. Em poucos minutos, os tachos estavam vazios.
As minhas reservas alimentares são mantidas ao mínimo indispensável. Em viagem, como sempre bastante menos. Não por desgostar das iguarias locais, muito pelo contrário! Apenas caio sempre "vítima" do mesmo ciclo vicioso: quanto menos como, menos apetite sinto; e quanto menos apetite sinto, menos vontade tenho de comer; logo, menos como! Não é raro chegar à hora de jantar apenas numa sandes e uma ou duas peças de fruta. A maior parte do tempo estou tão empenhado no que ainda tenho que fazer, no que quero ainda ver, no que não posso perder, que simplesmente me esqueço de comer. E na verdade não sinto falta. Já aqui tenho uma bela provisão de calorias à cintura...
Pelo sim, pelo não, compro um pão e uma salsicha fumada. Subo a bordo e o comboio parte. Esqueci-me da fruta...

Nos arredores de quase todas as localidades há indústrias devolutas. Edifícios com paredes imponentes, de tijolos de barro, rodeados de estruturas metálicas retorcias e ferrugentas. Algumas ainda operam.
"Quantas décadas terá isto?" - pergunto-me. Imagino um país densamente industrializado há 50 anos atrás. Na mesma altura em que a Europa se tentava reerguer das cinzas. Imagino um país tecnologicamente avançado, no entanto, com condições de trabalho e de vida muitas vezes miseráveis. Até macabras, ao ponto dos considerados bacilos sociais serem escravizados pela infame Gulag.
Esta era uma super-potência planetária. Rivalizava com os EUA ao ponto de medirem constantemente forças entre si, sempre de forma indirecta. Um mal menor. Um conflito militar aberto entre ambas as potências nucleares poderia bem ter sido o nosso fim.
Durante quase 50 anos, competiram no domínio militar, científico, político e em todas as outras frentes. Estávamos em plena Guerra Fria, um conflito latente e que ninguém desejava.
Protagonizaram "incidentes" um pouco por todo o globo. Apoiaram regimes adversários na Coreia, no Vietname, mais tarde no Afeganistão e médio-oriente. As suas esferas de influência disseminaram-se por todo o planeta. E mais para lá. A Corrida ao Espaço elevou a ciência a um novo patamar: nasceu a era espacial. Os russos na vanguarda da conquista do Cosmos, até ao dia em que os seus rivais afirmam ter alunado dois astronautas...
A dissolução da URSS ditou o fim de uma era, e a super-potência mergulhou fundo. Foi o fim da Gerra Fria. E o princípio de um novo ciclo.
A Rússia tem uma História atribulada. E quase sempre trágica e brutal. Disso não há a menor dúvida. Mas é certo que ressurgirá.

Atravessamos novamente densa Taiga. Árvores jovens amparam outras mortas, que ficam simplesmente encostadas às vivas. Há também troncos enormes e putrefactos caídos no solo. Este, permanece um misto enigmático de água e húmus. Não se distingue uma consistência, uma estrutura, uma ilusão de solidez. Tanto quanto podemos antever, um próximo passo pode bem ser em falso.
Nestas florestas vivem os espíritos e a magia. Estas são as florestas dos Shamans.

A densidade florestal é tal que não é possível enxergar mais de meia centena de metros para o seu interior. Esporádicas clareiras revelam um solo primitivamente verdejante e intacto, como se nunca um pé humano o tivesse pisado. Há colónias imensas de íris siberianas, tingindo de violeta a paisagem circundante.

Cruzam-se composições a cada dois minutos. Hora de ponta... o ritmo é frenético.

O céu procura revelar-se por entre as nuvens pesadas e sombrias. Por vezes, o Sol fura a barreira e inunda partes da floresta com a sua luz. Já desce sobre o horizonte. A atmosfera resplandece num suave tom dourado de cortar a respiração.
Penso que daria uma boa foto. Mas a janela do meu compartimento está já demasiado suja por fora. Praguejo por não a ter limpo na última paragem.

Passamos em mais uma pequena e remota povoação. Junto do apeadeiro há um pequeno monte de carvão acastanhado. É utilizado pelas provonidzas no samovar das carruagens, onde é permanentemente disponibilizada água fervente.

A luz natural é ténue. O Sol está já baixo. Chega a última noite a bordo.

O por-do-sol ilumina os céus de Tayshet num rosa-salmão sobrenatural. As nuvens reflectem a luz difusa sobre esta terra, outrora esquecida. Aqui começa a chamada BAM, a Baikal-Amur Mainline, outra linha que diverge da Transiberiana e que também atravessa os confins da Sibéria até Sovetskaya Gavan, na costa do Pacífico.
Atravessa florestas de Taiga virgens, inexploradas, intactas e estende-se paralelamente à Transiberiana a uma distância mínima de 600kms, sobre o volátil permafrost.
A região que atravessa, pela sua geografia, geologia e clima, é escassamente povoada e arredada de quaisquer roteiros turísticos.
São muito poucos os ocidentais que visitam esta parte do mundo. Estima-se em escassas dezenas os estrangeiros que, por ano, percorrem esta linha. Talvez seja a próxima a descobrir...


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quinta-feira, julho 24, 2008

A Transiberiana: parte 2


09h35: acordo em Tyumen (KM2144). Já estou na Sibéria... e na Ásia.

Pelo intercomunicador ouço a mesma voz dócil e feminina que parece falar em todas as estações. Reconforta-me. Hoje passei uma noite intensa. Sonhei com pessoas que me são muito queridas. Familiares e amigos desfilaram toda a noite, manipulados pela minha imaginação. Acordei diversas vezes confuso, com dificuldade em perceber onde estava.
Seria este o síndroma dos exilados para a Sibéria? Longe de mim sequer ousar compreender tais provações... foram milhões os que deixaram tudo para trás, à força, obrigados a cumprirem pesadas penas em campos de trabalho ou, no mínimo, a nunca mais regressarem às suas famílias e origens. A esmagadora maioria era presos políticos, muitos acusados de delitos menores, sem direito a qualquer julgamento. Era sistema na altura. A Sibéria representava o fim da linha para os indesejados do regime: o czarista e, mais tarde, o comunista.
Longe de mim sequer imaginar tal sofrimento... mas terão sido assim as mais piedosas das suas noites. Neste caminho outrora caminhado a passo e sem regresso, balanço eu a bordo do Baikal. De alguma forma pairou um fantasma antigo sobre os meus sonhos esta noite, mas agora percebo claramente onde estou e o que faço aqui. E, com muito respeito, sinto-me o homem mais feliz do mundo.

Tyumen é uma cidade próspera e a primeira que foi fundada na Sibéria.

10h42: passamos a ponte sobre o rio Tobol. A flora continua semelhante e o terreno é plano. Tão plano que por vezes, por veredas desalinhadas entre abetos imponentes, fintamos aquela linha infinitamente recta que divide o azul imaculado do céu da copa distante das árvores. Penso que nunca fintei um horizonte tão longínquo.

Por entre a farta vegetação, o solo cobre-se de erva verdejante, como se toda a biomassa tivesse sido removida. O que cai por terra, é rapidamente assimilado por o que se ergue. Há vida, muita vida por aqui.

Os postes de comunicação, moribundos, talvez já centenários, são parcialmente engolidos pelo solo pouco consistente e penduram-se nos cabos que deveriam antes suportar. Não encontro um único que mantenha a sua estatura vertical.

Distingo alguma coisa por entre o verde-escuro da vegetação cerrada. Vejo cores. Vejo flores, cruzes e fitas. É um cemitério siberiano. Curiosamente, a visão é surpreendente e reconfortante. Mesmo quem, como eu, não sabe muito acerca da História siberiana, pode afirmar com algum rigor que foram muitos milhões os que pereceram neste recanto despojado do planeta. Contudo, cemitérios não são propriamente visões comuns. Não será por isso necessário ser, de modo algum, místico para sentirmos conforto ao ver que também aqui houve quem fosse enterrado com dignidade, respeito e admiração.

As planícies douradas são agora mais frequentes. Sei que entre mim e o oceano estendem-se agora alguns milhares de quilómetros em qualquer direcção. Nunca estive tão longe do mar... trivial para um russo, não tanto para um alentejano de Sines, terra de pescadores.

11h50: vejo campos verde-água por entre as árvores altaneiras. No céu apenas duas nuvens difusas mancham o eterno azul.

13h10: parámos em Ichim (KM2431). Fica junto de um rio com extensos campos alagados. As casas são minúsculas, de madeira e não se vislumbram ruas por entre o matagal circundante.

14h30: extensas planícies pantanosas e muitas bétulas mortas. Apenas os troncos brancos permanecem erectos, incólumes, fantasmagóricos. As raízes apodreceram.

Passamos por Nazy, e pouco depois atravessamos mais uma zona horária. São agora 16h00.

O comboio desliza suavemente em direcção a Omsk. Esta secção da linha foi renovada. Por todo o lado há ruínas de uma super-potência que já existiu. São as cinzas da URSS.

17h50; chegamos a Omsk. A estação é ampla e bem tratada. Aproveito a curta paragem, saio e dou uma volta pelo cais. Dirijo-me a um dos quiosques e compro o pão doce, batatas fritas, água e algumas maças.
Está uma locomotiva a vapor numa das extremidades da estação. Dirijo-me até lá e tiro uma foto, mesmo a tempo do comboio anunciar mais uma partida.

Deixamos Omsk e a sua área metropolitana em cerca de meia hora. A cidade é grande e desenvolvida. É a segunda maior cidade da Sibéria, precedida de Novosibirsk, e é para lá que nos dirigimos agora, pela secção de linha férrea que mais carga escoa em todo o mundo!
Passa uma composição de mercadorias a cada 3 minutos. A precisão é desconcertante.

20h10: paragem curta em Tatarskaya, sem grandes motivos de interesse. A estação é nova e está inacabada. Das passagem aéreas só ficaram os lanços de escadas, que terminam a 10m de altura...
Nos arredores(KM2885) distinguem-se montes de carvão e por nós passa uma composição com mais de 30 vagões de carga. Está é uma das regiões mineiras mais movimentadas da federação.

22h00: estamos parados em Barabinsk(KM3040). Babushkas vendem chocolates, bebidas e peixe seco. Sinto o fedor à sua passagem. Não sinto curiosidade...

22h15: deixamos Barabinsk já com a noite muito perto. O céu é uma aguarela de tons quentes e frios. Está belo. A cidade estende-se na margem de um lago que mais se assemelha a um sapal. Nos arredores, casas de madeira expelem densas colunas de fumo pelas chaminés. Os siberianos estão a cozinhar o jantar.

Nunca vi tanta árvore como nos últimos dias. O território da Federação Russa é rico à superfície, e sob ela. Petróleo, gás, carvão, minerais... há de tudo nesta terra outrora esquecida e exilada do próprio "mundo civilizado".
Na distância, uma enorme chaminé industrial ensombra o horizonte com a uma extensa nuvem de fumo. Há muito a fazer neste mundo.

23h00: janto uma maçã e vou para a cama ler. Durmo...


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quarta-feira, julho 23, 2008

A Transiberiana: parte 1

O que se pode dizer acerca da mais longa viagem de comboio, através do maior continente, penetrando na mais incompreendida e misteriosa região do globo, num país que por si só já é desafiante? Eu não sei. Talvez as palavras virtuosas de Colin Thubron, escritas a abrir o seu livro "In Siberia", me ajudem a levantar uma ponta do véu emocional que paira sobre um viajante mais atento (tradução feita por mim, pois só possuo a versão original em inglês):

«Os campos gelados são atravessados, para sempre, por um homem acorrentado. Na distância, talvez, derive um rebanho de renas ou um caçador projecte a sua sombra na neve. Mas é tudo. Sibéria: preenche um dozeavo de toda a superfície terrena, contudo, esta é a impressão mais certa de nos deixar na mente. Uma beleza sombria, e um medo indelével.»

A bordo do comboio #10, conhecido por Baikal, tencionava percorrer os cerca de 5000Km que me separavam de Irkutsk, junto às margens do mítico Lago Baikal.
Para o comum dos mortais este nome pode não ter grande significado mas, para a Humanidade, o Baikal pode representar uma espécie de seguro de vida. Sendo o mais profundo, o mais antigo e mais volumoso lago de água doce do planeta, se esgotássemos todas as restantes fontes de água potável amanhã, o Baikal suportaria toda a vida durante mais de 40 anos. Para mim, além de tudo isto, é um objectivo, uma ambição, um sonho. Um sonho que se aproximava a cada quilómetro. Como se antecipa a concretização de um sonho se não com ansiedade?
Não sou homem de grandes emoções ou muitas palavras. Muito menos quando se trata de as transpor para o papel. Por isso, deixo-vos com 4 dias de notas soltas do meu logbook, que espero consigam transmitir uma ideia muito pálida do que é uma longa viagem de comboio, através da imensidão da bela e misteriosa Sibéria.

Dormi que nem um anjo. Acordo entorpecido e sem grande vontade de me erguer. Fico mais um pouco... afinal, é de descanso e muito tempo que se faz uma viagem para Este ao longo da linha transiberiana. Deixo-me embalar pelo suave movimento da composição e adormeço novamente...

Acordo. Não sei que horas são. Olho pela janela embaciada em busca de referências.

Passa finalmente uma cabana onde, num letreiro, se pode ler KM900. Se estiver correcto, estarei já em MT+1 (MT=Moscow Time=GMT+3), e isso quer dizer que já são 12h00. Quer dizer também que os percorremos em cerca de 11h30, o que dá uma média aproximada de 80Km/h. Recordo-me de ler no "In Siberia" que o comboio se movia a 50mph... parece que a cadência ainda é a mesma.

Lá fora impera a Taiga, a densa floresta nórdica de - essencialmente - abetos e pinheiros. Penetramos na maior floresta do mundo, somos rodeados e engolidos por ela.
Não é a Amazónia. Essa é a maior floresta tropical do planeta, mas esta é mesmo a maior de todas: a Taiga Siberiana, que se estende praticamente desde a Escandinávia até aos confins da Sibéria, junto ao Pacífico.

De vez em quando a barreira vegetal que nos rodeia é interrompida fugazmente e vislumbramos extensos campos verdejantes. No céu apenas algumas nuvens contrariam o imenso azul profundo.

Povoações dispersas passam desordenadamente. Casas de madeira decrepitas, pintadas de cores naturais; azul-céu, verde-erva; de longos telhados castanhos que descem quase até ao chão. Em volta, pequenos quintais onde se cultivam couves, cebolas, batatas e mais alguns vegetais que apoiam a dieta familiar.
Outras maiores ocupam parcelas de terreno superiores onde, por vezes, deambulam algumas cabeças de gado. As moradias, em si, dificilmente aparentam maiores luxos.

Por nós passam constantemente composições carregadas de matérias-primas e produtos acabados: contentores de mercadorias, toros de madeira, cisternas de crude e derivados, cereais...

A carruagem está repleta de germânicos reformados. Também alguns russos, embora poucos e discretos.

São 13h00 e chegámos a Kirov (nome antigo, agora chama-se Vyatka).

Estamos ao KM957. Passámos por mais uma central nuclear.

A composição move-se agora mais lentamente, serpenteando por entre a Taiga farta.

Sucedem-se alguns ajuntamentos de casas de madeira. Não há arruamentos, apenas estreitas veredas de terra entre as parcelas.

Está um dia maravilhoso e o comboio acelera agora mais.

Em determinados baixios junto da linha, o solo é aquoso, como que num estado transitório entre terra e água. Cresce vegetação "húmida". Por todo o lado correm riachos e ribeiras, por vezes cobertas de algas.

Paramos na estação e as babushkas rodeiam as portas das carruagens. Oferecem frutos vermelhos: framboesas, amoras, groselhas, cola e outras bagas silvestres. Há um género de pão doce e cerveja. Há vendedores de sandálias de plástico chinesas e artigos de verga: caixas, chapéus, cestas...

18h21: a primeira bateria da máquina esgota-se. Pergunto à provodnitza porque a tomada do meu compartimento não tem tensão. Ela liga um disjuntor... mas fica na mesma. Orienta-me até uma tomada no corredor. "Spasiba!". "Pojalusta!". Estamos no KM1260.

Prevalece a Taiga. Por entre a densa vegetação virgem, surgem esporádicas clareiras raramente cultivadas.

18h30: passámos mais uma zona horária, são agora 19h30.

Estamos a atravessar os Montes Urais. Estes materializam a divisão "académica" entre a Europa e a Ásia e seriam praticamente imperceptíveis, não fosse a planura imensa da Rússia europeia.

20h26: chegamos a Perm. Já tinha comido a última ração de noodles e saí para apreciar o pôr-do-sol reflectido na carruagem. À saída da estação, um obelisco com o busto de Lenine pontua o centro da rotunda. Esta estrada fez parte da "Siberian Trakt", a partir de 1863.

23h12: a noite cai enquanto nos aproximamos do KM1500.




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terça-feira, julho 22, 2008

Mais para Leste...

Não eram ainda 8h30 e já estava a acordar o Luciano e o Rafael. É dia de banya, um ritual tipicamente russo e que não deve ser ignorado em qualquer visita, particularmente, a Moscovo.

Saímos do hostel e tomamos um pequeno-almoço volante. Uns folhados de limão quentinhos, comprados a uma babushka numa passagem subterrânea, servem perfeitamente.

Mas o que é banya e porque é tão importante? Bem, fazem-se negócios, concertam-se leis e decidem-se guerras nestes locais de culto! O ritual dificilmente agradará a pessoas tímidas. Genericamente, são balneários públicos onde se tomam banhos de vapor, em saunas aquecidas a lenha, seguidos de violentos choques de temperatura através de imersões em piscinas, tanques ou banheiras cheia de água fria. É repetitivo e desinibido e consiste, basicamente, em despir o corpo e suportar o calor abrasador e húmido da sauna, o mais possível, até este transpirar por todos os poros. Durante a cozedura, é prática coçar todas as regiões do corpo por forma a eliminar toda a epiderme superficial morta. Nesta altura, o corpo está pronto para ser castigado com uma tareia bem aplicada recorrendo a chicotadas de tenros ramos de bétula. Aqui é recomendável pedir a assistência de alguém capaz (o ideal seria uma amiga meiga (ou um amigo, conforme o caso)... mas nos banya públicos existe segregação sexual - embora alguns disponham de salas privadas onde, tecnicamente, se podem misturar indivíduos de ambos os sexos) para garantir que todas as zonas corporais recebem um eficaz - e gentil - tratamento! Posto isto, a vítima deve correr para fora do forno e mergulhar repentinamente na água gelada. No inverno, onde possível, esta última fase é substituída pelo refrescante acto de rebolar na neve ou mergulhar num lago gelado através dum orifício na sua superfície...
Após cada ciclo, os participantes retiram-se para confortáveis salas de convívio, onde podem relaxar, conversar e beber shots de vodka ou canecas de cerveja. Os verdadeiros especialistas são capazes de repetir cada ciclo umas 10 vezes ao longo dum período de duas horas, convencionado como ideal para manter uma pele resplandecente! Já a frequência destas sessões varia consoante a altura do ano, e as posses do indivíduo, não sendo de estranhar que hajam russos que apenas se possam dar ao luxo do banya uma vez por mês.
Dado que já se apercebeu da natureza íntima e desinibida do ritual, talvez agora lhe seja mais fácil compreender o seu papel e importância na sociedade russa, particularmente nos meandros do poder económico ou político. Não poderia deixar de testemunhar esta tradição.

Seguimos a pé até ao Sandunovsky Banya, o mais antigo e luxuoso balneário moscovita. Temos azar... hoje a ala "Highest Class", a secção mais luxuosa do balneário, encerra para limpeza semanal. Resta-nos a ala "Second Highest Class".

Pagamos o acesso básico e descemos à ala, que fica no piso inferior. Há uma panóplia de serviços adicionais, executados pelos profissionais do banya, como massagens com (muito) sabão ou assistência personalizada na sauna mas, para uma primeira incursão e dada a natureza dos assistentes, achámos por bem manter alguma distância e apenas nos dedicarmos à observação e aprendizagem.

O acolhedor hall de entrada ostenta uma wall of fame onde exibem fotos de personalidades famosas que por ali passaram. Entre elas, o senhor da foto. A nossa, certamente, não virá a constar naquela parede. Por isso, aqui a coloco eu!


Não contei quantos ciclos «quente-frio» executámos nas duas horas em que lá estivemos. Mas foram certamente mais do que os russos que estavam connosco. Estes permaneciam menos tempo dentro da sauna - talvez nós, os latinos, sejamos mais tolerantes ao calor(?) - e mais tempo nas salas de convívio. Mas vinham regularmente à sauna onde eram profissionalmente chicoteados pelos assistentes. Por fim, se alguma impureza restasse, foi com certeza removida após serem esfregados com fartura de sabão durante mais de meia hora... tudo, obviamente, por razões de higiene!

Ao meio-dia já estávamos despachados e preparados para atacar a zona ocidental da cidade, onde se localizam algumas das mais interessantes atracções moscovitas. Apanhámos o metro até à estação Kutozovskaya, assim chamada porque - pasmem-se - fica na Kutozovsky Prospekt. A avenida foi assim nomeada em honra ao marechal Kutuzov, que comandou as tropas russas na vitória sobre Napoleão, e é também onde os russos ergueram o Arco do Triunfo. Também aqui ficam alguns dos melhores museus militares. Visitámos o museu Borodino, dedicado exclusivamente a essa batalha de 1812 em que os russos derrotaram as tropas de Napoleão e que exibe fabulosos panoramas a 360º (fotos); e o titânico Museu da Grande Guerra Patriótica (Central Museum on the Great Patriotic War), com quase 25.000m2 de exposições dedicadas à participação russa na segunda grande guerra, particularmente à sua intervenção militar dos anos 1941 a 1945 e que foi, de longe, o melhor museu militar que já tive oportunidade de visitar. Nenhum outro encontro com a História da segunda grande guerra, em toda a minha vida, me foi também tão revelador como este. E também já percorri os palcos e museus, franceses e americanos, na Normandia.


É por demais evidente a polarização ocidentalista da nossa educação. Felizmente. os tempos são outros mas ninguém pode explicar porque é que só ensinamos às crianças a perspectiva americana (ou americanizada) da guerra. Há uma perspectiva soviética tão ou mais rica por revelar e que não é sequer abordada... e faz realmente falta conhecer todas as perspectivas sobre os mais importantes acontecimentos da Humanidade. Para que não se cometam os mesmos erros ou se façam juízos precipitados.

Aqui, em exibição, estão incontáveis objectos de interesse histórico desde a bandeira Nazi que pontuava o Reichstag - quando as tropas russas tomaram Berlim - até objectos pessoais dos soldados, passando por armamento, mobiliário, panfletos de propaganda, obras de arte, panoramas... enfim, uma miríade infindável de factos para conhecer nas mais diversas formas de expressão. No centro, uma enorme cúpula redonda alberga um memorial onde constam os nomes dos militares russos que perderam a vida nesta campanha. Um local solene e grandioso. Só para terem uma pequena e incipiente ideia, vejam algumas fotos aqui.


Foi já ao fim da tarde que demos por terminada a incursão neste admirável mundo, para mim, novo. Percorremos os extensos jardins ao longo de quilómetros e terminamos com uma visita à exibição de engenharia militar ferroviária e aeronáutica, onde constam desde locomotivas, pontes, tanques, helis, bombardeiros, MIGs, etc até construções militares entrincheiradas. Fica a escassas centenas de metros do museu patriótico. Podem ver algumas fotos aqui. Vale a pena darem lá um saltinho.


Regressámos a casa, não sem antes passarmos por outra filial do My-My para forrar o estômago. Borsch, naco de porco grelhado com couve e batatas, refeição deliciosa e coroada com uma fatia de bolo de chocolate! Bem merecida após a extensa caminhada do dia!
Chegamos ao hostel por volta das 21h. Tenho tempo para carregar algumas fotos e despedir-me do pessoal. Desço à estação de metro e chego à Yarolavskaya às 22h55. As indicações são confusas e tenho alguma dificuldade em encontrar o cais 1, acessível pelo exterior da estação. Finalmente, dou com o cais, onde já ruge o Baikal. Mal tenho tempo de comprar água e alguns noodles instantâneos antes de correr para a minha carruagem.
Mostro o bilhete à provonidza e esta acompanha-me ao interior do vagão. Não percebo bem porquê... mas a resposta não tardou.
Cama 37. Cada vagão Kupé tem 9 compartimentos de 4 camas, ou seja, no total são 36 camas. Nem me tinha apercebido disto antes! O meu compartimento afinal vai ser o «reservado», um compartimento de duas camas onde normalmente fica o pessoal da empresa e onde costumam dormir as provonidzas - as assistentes do comboio. Mas, como me venderam um dos lugares.... vou ficar sozinho!
A principio desgosta-me a ideia... mas à medida que me vou apercebendo dos restantes passageiros, um enorme grupo de idosos germânicos a viajar em pacote turístico, fico cada vez mais feliz no meu compartimento privado! Afinal, podia ser pior...

A composição já iniciou a sua lenta peregrinação para leste. Deito-me na cama superior, pois já transformei o rés-de-chão no meu escritório! Reparo que os noodles já passaram todos da validade há quase dois anos... e quem é que planeia as coisas com calma?? Arghhh!

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segunda-feira, julho 21, 2008

Assalto a Moscovo

Contava deixar Moscovo ao fim da tarde mas decidi ficar mais uma noite. Assim restam praticamente dois dias para explorar o essencial da cidade. Ligo para o hostel e confirmo a minha intenção.
De energia redobrada, enfio-me no metro e sigo até à Yaroslavskiy, a principal estação ferroviária que serve as partidas para leste. Quero avaliar a disponibilidade e os preços dos bilhetes para Irkutsk, na Sibéria, junto do lago Baikal.

Não é fácil. As velhas funcionarias não falam inglês mas lá nos conseguimos entender por gestos e rabiscos numa folha de papel. Para amanhã, só já há bilhetes para o #10 - o famoso Baikal, o mais confortável comboio entre Moscovo e Irkutsk - em Kupe( 2a classe - compartimento fechado - 4 camas) ou platskartny (3a classe - camarata com dezenas de camas) no #350. O segundo custa menos de metade mas não tem serviços e, sem portas ou compartimentos, pode ser complicado abandonar a bagagem. São 4 noites a bordo e não quero andar preocupado com bagagens.
Os bilhetes são consideravelmente mais baratos quando comprados com semanas de antecedência, que é o que a esmagadora maioria dos estrangeiros faz, recorrendo a agências especializadas. Eu não posso - nem quero - dar-me ao luxo de tão apurado planeamento... valorizo a liberdade de poder alterar o meu itinerário, ou poder ficar mais ou menos tempo algures, se assim o entender. Gosto de ir improvisando, mas isso tem também um custo. Decido pagar o preço do improviso. Vou no "Baikal".
Não aceitam plástico na estação e decido voltar mais tarde, depois de trocar dinheiro.

Desço novamente a Kitay-Gorod. Regresso à hostel e solicito que me registem o visto. Afinal fico mais de 72h em Moscovo e, como tal, alguém tem de me registar junto das entidades oficiais.
Daqui sigo a pé até junto do Kremlin. O primeiro vislumbre das muralhas impressiona. São sólidas e imponentes. Depois vejo a torre Spasskaya.
Desfaco a curva entre a ulitsa Varvarka e a Krasnaya Ploshchad e "esbarro" na catedral de São Basílio. É muito mais bela ao vivo! A decoração, efeitos e cores é deslumbrante e perco uma boa hora a admirar os detalhes das cúpulas e fachadas.
Atravesso calmamente a praça. O Lenine hoje não está para receber visitas. Passo toda a tarde junto do Kremlin e da praça vermelha, a admirar os edifícios e as pessoas.

Apesar de ser um dia de semana, as ruas estão cheias de famílias russas que se passeiam e divertem sob um sol radiante. Está calor e, onde há água, há vida! Centenas de pessoas concentram-se junto das fontes e lagos artificiais, para se refrescarem um pouco.
Babushkas vendem cachorros quentes e gelados em carrinhos de rua... a fome aperta. Decido experimentar as iguarias locais.

Por volta das 19h regresso ao hostel. Quase simultaneamente chega o Luciano e o Rafael, também um brasileiro de São Paulo, a viver em Dublin. Os galegos chegam minutos depois.
Já temos planos. Vamos à Yaroslavskiy comprar os bilhetes (o Luciano vai para São Peterburgo) e depois vamos à caca das "7 irmãs", os arranha-céus de Estaline.

Nos arredores de Yaroslavskiy procuro um cambista e compro rublos. Na estação, trato do bilhete para o #10, o "Baikal": vagão 2, cama 37. Vale 4 noites de viagem até Irkutsk, junto às margens do mítico Lago Baikal. A funcionária rende-se aos meus esforços para comunicar em russo. Deixa a indiferença inicial e encarrega-se de me explicar todos os detalhes calmamente - embora em russo - com um sorriso afável nos lábios. O Luciano também já está servido. O Rafael tem quase o mesmo itinerário que eu, embora num timing diferente, mas já comprou os bilhetes há varias semanas (através das tais agências). Vamos às irmãs...

Passamos horas a percorrer as ruas e metro de Moscovo, em busca destes edifícios únicos. Depois, cansados, decidimos regressar ao hostel a partir da Lubyanka, junto à antiga sede do KGB.
Entretanto o grupo desfaz-se e ficamos só os três. Passamos por um restaurante "self-service", de nome My-My (Mu-Mu, é uma cadeia de restaurantes), que nos desperta a atenção. Decidimos experimentar. Entretenho-me com um borsch, uma fatia de carne de porco coberta com natas e batata palha, gomos de batata assada e uma gelatina com pedaços de fruta tropical. Tudo é delicioso! Não deixem de experimentar um quando passarem por Moscovo!!

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Liberdade!

Acordo cedo. Ainda não são 9h da manha e já estou a caminho da embaixada. Apanho o metro em Kitay-Gorod e sigo até à Prospekt Mira, a estação mais próxima do local.
Fica na Botanitchesky Per. e a secção consular é num dos lados do edifício. Entro no pequeno hall e dirijo-me à única secretaria. Não fala português, nem inglês... fala russo.
Por gestos peco-lhe que chame alguém para falar comigo. Diz que não esta ninguém. Insisto e manda-me esperar.
Já conheço suficientemente bem os russos. Quando não compreendem, não sabem ou não querem responder, mandam-nos esperar. No hall já há umas 10 pessoas amontoadas para pedir um visto. Insisto, já ligeiramente alterado por estar em solo português e não obter atenção! Martela alguns números num telefone e fala com alguém.
Instantes depois, surge outra mulher. Também é russa e falam entre si - sobre mim - durante um bocado sem me dirigir o discurso. Começa-me a chegar a mostarda ao nariz... exijo falar com um diplomata. Alguém teria de ter conhecimento de que eu iria aparecer ali hoje! A segunda mulher pergunta-me o nome - em português!!! - e desaparece de imediato. Foi a gota...

Ligo novamente para Portugal. A simpática diplomata, do consulado de emergência, atura a minha indisposição momentânea perante o tratamento que estou a ter numa embaixada do meu próprio país! Diz-me que o embaixador está em Portugal mas vai ligar para a número dois em Moscovo. Desligo e insisto com a recepcionista que quero falar com alguém - agora - em PORTUGUÊS! Não parece saber o que fazer... martela números no telefone, sem qualquer nexo.
Minutos depois surge um homem baixo e mulato no hall:
"Português? Português?" - repete em todas as direcções. Finalmente...
Deixo o hall e sigo o homem até ao primeiro andar. Explico a situação e sai por instantes. Volta e pede-me que o siga, pelos serviços, até um gabinete.
Assim que entro...
"Vocês , só se sabem meter em sarilhos!!! Então vêm para um pais destes e não sabem o que devem fazer com os vistos??" - exclama o homem, indignado, sentado atrás duma ampla secretaria.
Finalmente, um genuíno português!! Não consegui deixar de sorrir durante o raspanete do Sr. Moura, diplomata em Moscovo, e de certa forma apreciei imediatamente da sua postura e senti de imediato a certeza que ficaria tudo resolvido!
Explico-lhe melhor o sucedido. Diz-me que foi com ele que falaram no Sábado. Sabe que em tempos aconteceu o mesmo a outra pessoa, mas não se lembra como foi resolvido. Chama a sua secretaria, uma russa jovem e bonita que fala perfeitamente português, e encarrega-a de descobrir junto dos russos o que é necessário fazer para resolver isto. Fico no seu gabinete mais de uma hora, falamos inevitavelmente sobre Portugal e sobre a Rússia. Não vivem aqui muitos portugueses e, os poucos que vivem, só o comunicam à embaixada quando tem problemas... somos mesmo assim, nós, os portugueses.
Depois, a secretária regressa e diz-me que espera esclarecimentos da embaixada da Bielorrússia. Em principio, não há qualquer problema com os meus documentos... mas vai demorar mais uma hora a ter a confirmação e o Sr. Moura diz-me que, se quiser, posso ir dar uma volta. Mergulho nas ruas, cheio de energia... e de fome!!

Subo a Prospekt Mira até à estação Rizhskiy e depois sigo pela Krestovskiy Per. já a saborear um folhado de salsicha acabado de fazer por uma das muitas babushkas que os vendem em quiosques de rua. Esta zona da cidade é essencialmente residencial, de altos edifícios sóbrios e descolorados. Ruas ladeadas por árvores nos passeios amplos e desobstruídos. O comercio é escasso e disperso.
Gosto de ver como vivem os locais e é em subúrbios destes, aparentemente despovoados durante o dia, que vivem a maioria dos moscovitas.

Continuo pela Pereyaslavskaya ulitsa até à rua da embaixada, onde regresso por volta das 12h. Tenho de aguardar novamente autorização da secretária-recepcionista para subir as escadas.
"Wait" - demora... o hall está ainda mais congestionado. Não imaginava um consulado português em Moscovo tão concorrido.
"I'm expected!" - insisto irritado, já' sem qualquer paciência para aturar esta atitude que, a meu ver, é simplesmente intolerável e inconcebível onde quer que exista uma presença portuguesa. Tanto quanto sei (sou português...), ninguém procura uma embaixada do seu país para queimar tempo... do seu ou dos outros! Mas parece que estou enganado, a julgar por esta barreira invisível...
Dez minutos depois, autoriza-me a subir...
Entro novamente no gabinete do Sr.Moura e desabafo...

Pouco depois, temos boas noticias... tudo não passa, afinal, de "falta de informação"! O controlo de entrada na Bielorrússia é suficiente. Estou legal!
A secretaria fica maravilhada com os pormenores da minha viagem. Diz que também quer vir!! O Sr. Moura dá-me o seu numero de telemóvel particular e insiste que lhe ligue se tiver qualquer problema. Despeço-me, agradecido, destas pessoas maravilhosas (e que são o Portugal de muitos portugueses, tanto em Portugal como por esse mundo fora) que não teria tido oportunidade de conhecer não fosse ter estado "ilegal" por dois dias! Valeu a pena... mas agora é tempo de apreciar novamente a liberdade!!

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domingo, julho 20, 2008

Fronteira? Qual fronteira?!...

Saio do metro e emerjo numa larga avenida, a ulitsa Solyanka, poucos quilómetros a sul de Kitay-Gorod, o bairro adjacente ao Kremlin mais antigo de Moscovo.
Ligo novamente para a embaixada, mas sem sucesso. Ligo para Portugal. Arranjam-me um contacto do MNE e sou atendido por um segurança. Passa-me à emergência consular.
Expliquei a situação à simpática senhora mas também não sabem o que devo fazer. São contudo prestáveis e dizem-me que vão tentar informar a embaixada em Moscovo e que me devo dirigir para o hostel e aguardar resposta. É sábado e o dia está espectacular. Como poderei aguentar um dia e meio de reclusão?

Chego ao hostel. Fica no 4º e último andar dum edifício decadente, numa rua secundária junto à ulitsa Maroseyka. Daqui à praça vermelha são talvez 500m...
O quarto é pequeno e tem 4 beliches. Há mais 4 quartos iguais. Somos 40 hóspedes num apartamento de 150m2! Não sobra muito espaço para esticar as pernas.
Os que se amontoam no exíguo hall de convívio não parecem muito simpáticos. A recepcionista é.
Há dois frigoríficos (que parecem aquecer) de refrigerantes e cervejas. Nas paredes, cartazes exibem a velha propaganda comunista e forram uma parede por completo. Observo-os. Sempre gostei destes cartazes... e também das pinturas que costumavam fazer nas paredes. No Alentejo, onde cresci, recordo-me de ver muitas paredes decoradas com motivos políticos de esquerda. Não há marcas. Só icons: o proletariado, o herói do povo.
Na outra parede, em oposição, publicitam-se hotéis noutros locais da Rússia e Ásia (que este é ponto de passagem para viajantes trans-siberianos), parcerias comerciais, agências de turismo... a Rússia já mudou. A alegoria popular do Agricultor-Herói e da Mãe-Rússia, que tudo dá, já cedeu o lugar ao oportunismo e faro comercial dos "novos" russos. O caminho é evidente: já foi trilhado. Agora seguem na senda do capitalismo desenfreado, imitando os serviços - e os preços - dos seus mais badalados vizinhos ocidentais. Na nova Rússia já há de tudo, a um preço... pois os russos já perceberam que agora é tempo de abraçar os hábitos ocidentais e lucrar com a globalização e abertura ao ocidente, com tudo o que de bom - e mau - ela acarreta.
Contudo, não é surpresa que os maus hábitos sao os mais difíceis de perder... e os mais fáceis de adquirir. A nova revolução cultural segue o seu curso. Hoje inspiram capitalismo e expiram autoritarismo. Agora. Já. É este o tempo da Rússia.
E que diria Lenine e Estaline se vissem esta nova Rússia? Talvez Estaline se torça na sua cova... pois Lenine é exibido no mausoléu e não há testemunhos que se tenha manifestado... até ao momento.

Umas horas mais tarde recebo a chamada de Portugal. Já informaram os diplomatas da embaixada e não podem fazer nada agora, tenho de aguardar por segunda-feira.
"E se a policia me pede o passaporte?" - pergunto.
"Talvez seja melhor aguardar no hotel..." - sentenca de encarceramento.

Entretanto, conheço dois dos colegas de quarto. O Miguel e o Dominguez são galegos e estão lá a "estagiar" um mês, após um ano de curso de Russo em Espanha. Dizem que não se conseguem fazer entender - ou miguem os quer entender - e que acabam de ser interceptados pela policia... e que aquele papel rançoso que lhes deram no aeroporto, e que já tinham esquecido e (felizmente) enrodilhado no fundo das mochilas, afinal é importante e safou-os duma pesada multa... e de mais problemas.
Saem para jantar e fico para trás. É melhor não arriscar... ainda agora comecei a viagem. Passo o que resta da tarde, e a maior parte da noite, a dormitar, a ouvir música e a ler.
"Nunca mais é segunda..." - e o Kremlin ali tão perto...

Junto a roupa suja e peço que me a lavem. Cobram uma pequena fortuna, mas agora não tenho disposição nem paciência para actividades domésticas... nem quero aparecer na embaixada a tresandar.

Volto à leitura e horas depois chega mais um hóspede...
"Hi, my name is Luciano!" - exclama num sotaque inconfundível.
"Viva! Sou o Miguel!"

Brasileiro de São Paulo, médico, acabadinho de aterrar em Moscovo, vai ficar por aqui 5 dias e outros tantos em S. Petersburgo. Pousa a mochila e começa imediatamente a preparar-se para a noite!
"Vou pegar ai uns clubes! Quero ver essas mulheres!!" - a recepcionista, curiosamente, deseja-lhe boa sorte.
"Sacana!! A que horas devo ligar para a tua embaixada??" - brinco.

De camisa havaiana, ar confiante e enérgico, sai para a noite moscovita.
Leio durante mais algumas horas e adormeço novamente a ouvir musica.

Acordo. Não sei exactamente que horas são mas também não é relevante: ainda é domingo. Mais tarde, vejo que o relógio do telemóvel marca 9h20 mas já lhe perdi o rasto ao fuso horário.
Os galegos já acordaram e o Luciano ainda dorme profundamente. Deve ter tido uma noite cansativa.
Uso o PC do hostel e o relógio indica 11h30. É melhor, mas ainda assim é cedo. Pelo menos para quem vai passar todo o dia fechado no hostel...
Quase cedo à tentação de sair, de me esquivar só ali ate ao Kremlin, quando ouço na recepção comentários acerca da "actividade policial" na praça vermelha.
Não quero comprometer esta viagem. Não sei o que arrisco se me "apanharem". Espero. Nem tenho sentido muita fome.

Deambulo preguiçosamente pelo hostel. Sento-me num sofá e pego num guia LP "Russia & Belarus" que repousa sobre a mesa. Às tantas, deparo-me na pág. 720:

<< Note that there is effectively no border between Belarus and Russia, so if you're arriving from Russia (on a train with final destination in Belarus) you may not encounter any border guards and in theory it is possible to enter and leave (back to Russia) without a visa. >>

Isto projectou alguma luz sobre o assunto. Afinal não fui controlado simplesmente porque não há controlo! Mas, permanecia a duvida: então o que deve um viajante fazer? Porque me mandou o policia para trás, até Smolensk?? A embaixada também não sabe??
Continuo a leitura e pego noutro guia, o LP "Eastern Europe", onde encontro na pág. 96:

<< As we went to press, there was effectively no border between Russia and Belarus. In theory, it's possible to enter Belarus by train and leave it for Russia - or go to Russia and back from Belarus - without going through passport control, and therefore without needing a visa for the country you're sneaking into. However, a hotel won't take you without a visa, so you have to stay with friends or rent an apartment, and if your visa-less documents are checked on the street (unlikely unless you're a troublemaker or a person of colour), you will be deported. >>

Um cenário animador, portanto. Era informação um pouco mais explicita mas, ainda assim, muito lacónica. Continuava sem saber em que situação é que eu estava. Tinha visto para ambos os países... só não tinham sido validados, pensava.
Passo o resto da tarde a carregar fotos e a navegar pela internet à procura de mais informação. Não encontro nada.

Por volta das 18h30 regresso ao quarto e o Luciano já desapareceu. Entretanto devolvem-me a roupa lavada... e molhada. Estendo-a pelos beliches. Passo o resto do dia a ler.

Os galegos regressam cansados. Hoje viram muita coisa. Foram ao Gorky Park e dizem que não vale a pena perder por lá tempo.
Pouco depois das 21h, regressa o Luciano. Conta-me os detalhes da farra nocturna... quatro discotecas e não "pescou" nada. Recordo as palavras da recepcionista.
Acordou já depois das 18h e foi passear pelas monumentais estações de metro. Admiro-me como conseguiu dormir tanto.
Umas horas mais tarde, estende-me um cartão de visita: Luciano Rotella - Medicina do Sono.

Entretanto, já arranjou programa para a noite. Andou a explorar as potencialidades do HC (Hospitality Club) e vai sair com uma amiga! "É isso aí, cara!!"
O hostel, à semelhança do resto da cidade, está sem a vulgar àgua quente centralizada. Todos os anos, durante um mês quente - Julho ou Agosto - o sistema é desligado para «limpeza e manutenção». No hostel afixaram um cartaz que "promete" a instalação de uma caldeira «dentro de dois dias». Não sei precisar quantas semanas tem... mas tomei banho mesmo assim.
O pessoal começa a encher o hostel. Vem um aroma agradável da cozinha. Surge mais um residente no quarto. Alto, cabelo longo, liso e negro, enormes patilhas e uma grande cicatriz no lábio superior que lhe dificulta a fala. O seu inglês é básico. Chama-se Giorgio e desvio o meu "estendal" para que possa fazer a cama.
No hall um grupo de 7 pessoas diverte-se em torno dumas garrafas de vodka. A julgar pela forma como arrastam as palavras, já estão fresquinhos. É o que dá beber vodka sem "zakuski" (aperitivos, normalmente pickles, pão preto, carne ou peixe secos, etc)! Qualquer russo dirá que não se deve beber vodka sem "zakuski", senão acaba-se embriagado!!...

Volto ao quarto e leio ao som da musica, até dormir. Amanhã, finalmente, acaba a minha "pena"...

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