domingo, abril 30, 2006

Dia 17: Do Oued El Mellah a Moutbanc

Deixámos as margens calmas do Oued El Mellah já passavam as 10h30. Seguimos para sudoeste, em aproximação à zona fronteiriça, ao longo das pistas rápidas e bem marcadas do Dakar.
A paisagem era maioritariamente plana, seca e pontuada regularmente por acácias. Em algumas zonas mais baixas, tendencialmente mais húmidas, a concentração desta espécie era substancialmente superior. Isso constituía também uma ameaça à progressão pois os seus espinhos, rijos e longos, caem e espalham-se por toda a parte.
Tínhamos rolado cerca de meia hora quando o Luís Ferreira, à minha frente, pára com a roda da frente furada.
O calor do Sol não dava tréguas e, com cuidado, encostámos as motos à sombra das acácias para dar início à operação de reparação que se prolongaria, calmamente, por cerca de hora e meia.

Seguíamos para oeste e não demorámos mais de 20 minutos a alcançar o primeiro controlo militar do dia. No local, já aguardavam 4 ou 5 jipes com matrículas europeias e vários TTuristas. O posto, uma pequena barraca de adobe com telhado de madeira e canas, ficava no cruzamento de várias pistas. A azáfama era grande.
Os militares reuniam os passaportes e comunicavam a informação via rádio para o posto de controlo seguinte. Depois indicavam qual a pista que, obrigatoriamente, deveríamos seguir.
Após 10 minutos, deram-nos ordem para prosseguir. Avançámos pela pista indicada, azimute sudoeste, quando o que realmente pretendíamos era seguir por outra mais para sul. Mas não deixaram. C'est interdit.

Cerca de meia hora depois, através duma zona estreita e arenosa, chegámos ao Oued Moudils. A vegetação circundante oferecia o agradável abrigo para almoçar.
Deslocá-mo-nos ao longo do oued para nos afastarmos da pista. Em breve passariam as restantes viaturas e não precisávamos de os estorvar!
Sentado à sombra duma enorme acácia, enquanto discutíamos já o futuro da expedição, saciei-me com uma conserva de lulas recheadas e outra de atum com tomate. Como sobremesa comi uma laranja.

O dia passado em Foum-Zguid tinha um preço. Não foi causa única, mas consolidou as nossas certezas de que já não teríamos tempo para chegar a Smara, no Sahara Ocidental. Discutíamos, portanto, o que fazer daqui para a frente.
Havia alguma divergência entre duas alternativas: continuar a seguir a rota traçada ou reformular a rota, apontando desde já para Norte.
Acordámos em seguir a rota planeada o mais possível. Pessoalmente, tinha alguma esperança de conseguir forçar o andamento e ainda alcançar Smara. Mas seria difícil.

Quarenta minutos depois, estávamos em movimento. A pista começava a apontar para noroeste, desviando-nos do nosso azimute e afastando-nos da fronteira. Eram umas 15h45 quando chegámos a posto militar seguinte. Controlaram novamente o passaporte, comunicaram com o outro posto e deixaram-nos prosseguir.
Por volta das 16h30 chegámos a uma encruzilhada. À nossa esquerda, uma pista bem marcada seguía para sul. Achámos que poderíamos seguir por ali. Tinham-nos ordenado que seguíssemos por aquela pista, mas não nos disseram até onde! A somar, ali não havia qualquer controlo nem outras informações que pudessem indicar que se tratava de uma pista interdita. E por ali seguimos.

Não demorámos muito a chegar. Foram talvez 10Kms. À nossa frente, edificado junto ao sopé de um monte, ladeado de muros de pedra pintados e composto de vários edifícios e casernas, estendia-se um quartel militar. O perímetro parecia deserto, embora a muralha que se erguia diante de nós nos impedisse de enxergar o que se passava do outro lado. Sem parar, divergimos da pista principal, tentando passar despercebidos e contornar aquele enorme monte de terra.

Sem saída. Estávamos num enorme beco. Detrás do monte saem meia dúzia de militares a correr, e a gritar, na nossa direcção. Alguns de chinelos, poucos de farda, outros empunhando a AK47, as famosas Kalashnikov...

Parámos, desligámos os motores e aguardámos instruções. Um militar jovem, de t-shirt, calças de fato-treino e havaianas, aparentemente o mais graduado do grupo, dirige-se a nós ofegante, irritado e ordena-nos que o acompanhemos. Seguimos lentamente sob escolta até próximo da entrada para as trincheiras ocultas atrás do monte. Oferece-nos chá, que recusamos educadamente. Ordena-nos que aguardemos e desaparece. Os restantes, os das AK47, ficam junto de nós.

Passados escassos minutos regressa já com farda, botas e óculos escuros estilo aviador. Aponta para o quartel, que distava cerca de um quilómetro, e ordena novamente que o sigamos. Oferecemos-lhe boleia e ele senta-se à pendura de uma Africa Twin.
Lentamente aproximá-mo-nos do quartel. À chegada o comandante salta de cima da AT, ainda com a moto em movimento, e ia-se estatelando no chão. Não consegui conter o momento cómico. Recompõe-se, retira os óculos, sacode a cabeça, pede os passaportes, ordena que aguardemos e afasta-se rapidamente para um dos edifícios.

À nossa volta vão-se juntando mais alguns militares, curiosos com a nossa presença e com as motos.
Cerca de um quarto de hora depois, regressa acompanhado de um oficial mais velho. Aparentava cerca de 50 anos, talvez coronel, era baixo, obeso, muito lento... física e mentalmente.
Insistia em saber como tínhamos ido ali parar. A nossa explicação era rápida e simples mas, apesar do auxílio do jovem comandante, teve algumas dificuldades em perceber. Depois, com a situação clarificada, instalou-se o ambiente amigável. Anotaram os dados do passaporte, matrículas das motos e deram-nos instruções para regressarmos à pista de onde tínhamos divergido.

Despedi-mo-nos e partimos para Norte. Cerca de 4Kms depois, já sem o aquartelamento à vista, divergimos novamente da pista em direcção a Oeste.
Subimos a uma região planáltica com cerca de 6Kms de largura, chamada Adtiliya, para lá da qual na divisávamos passagem. Parámos as motos por instantes enquanto contemplávamos a grandiosidade do vale que se estendia diante de nós.
O Quim, do alto do penhasco, fintava o horizonte em busca de alternativas. El Capitan!

Durante alguns quilómetros andámos à procura de caminhos até que, já no outro lado do vale, encontrámos novamente a pista do Dakar! Estava cheia de regos profundos e irregulares o que indicava que, na altura em que foi percorrida, se deveria assemelhar a um pântano e deve ter sido um autêntico calvário para os participantes da prova. Também não tinha nenhum aspecto de ter sido utilizada recentemente. Seguimos ao longo da pista para Sul paralelamente, a cerca de 6Kms de distância, à estrada entre Tata e Akka.
Parámos junto ao oásis de Si Al Mahdawi. Eram cerca das 18h30. O Sol já estava baixo mas tínhamos ainda uma hora de luz para encontrar local de acampamento.
Após alguns minutos de descontracção a coluna prosseguiu novamente. Continuámos a progredir para Sudoeste. A pista descrevia um enorme S enquanto subia por uma encosta acima, através duma estreita trialeira completamente escavacada pelos rodados dos camiões.
Depois continuava ao lado do planalto de Al Ghans. Por esta altura já tinha me tinha deixado para trás, para manter a distância do resto do grupo que me permitia evitar o pó e acelerar ao meu belo prazer!
Ao cabo de uns 10Kms cheguei a uma encruzilhada com outra pista à direita. Não vi ninguém e, como tal, segui em frente. Ainda não tinha passado um quilómetro quando começo a ouvir alguém a gritar. Pela encosta adjacente abaixo, corria um militar marroquino na minha direcção. Imagino que tenhamos colocado as tropas fronteiriças todas em alerta vermelho! Tal foi a quantidade de vezes que comunicaram por rádio a nossa localização que já todos deviam saber que por ali andavam uns tipos de moto a tentar furar o cordão de segurança! Parei a moto e aguardei.
- "Où allez-vous?" - exclamou, ofegante.
- "Je vais avec mes amis! Les avez-vous vus?" - respondi, tentando confirmar se teriam seguido em frente.
- "Oui. Ils sont allés de cette façon!" - respondeu, apontando em direcção à outra pista mais atrás.
- "Merci! Au revoir!" - e pus-me a milhas antes que perdesse o factor "surpresa" e o militar começasse a pedir documentos!
Dez minutos depois, encontrei o restante grupo já parado junto ao oásis de Moutbanc.
Eram quase 19h30 e decidimos instalar ali o bivouac no meio do palmeiral.

Montámos as tendas à medida que a noite ia caindo. Entretanto comentava com o Jacinto que me estava mesmo, mesmo, mesmo a apetecer uma cola geladinha! A localidade estava ali ao lado, a 3Kms de pista mais 15Kms de asfalto, e não resistimos! Pegou na moto dele, montei-me à pendura, e lá fomos nós a caminho de Akka em busca duma cola fresquinha!

Chegámos a Akka em boa hora! As ruas fervilhavam de vida e o café abarrotava de locais, em torno de um televisor, a ver um jogo de futebol! Sentei-me numa das mesas da esplanada enquanto o Jacinto foi buscar as colas. Imediatamente, aborda-me uma jovem relativamente abonada, envergando um top e umas calças de ganga justinhas, munida de um discurso, no mínimo, radical...
Ninguém se parecia importar muito com a questão. Mas não deixei de estranhar a exibição de tais comportamentos em público. Talvez o preconceituoso afinal tenha sido eu... pois, decididamente, não esperava presenciar tal exibição em plena praça duma pequena e esquecida localidade do sul! Mas presumo que também ali ninguém estaria à espera de ver, àquelas horas, dois estrangeiros a chegar à localidade, de t-shirt e chinelos, montados numa moto e sem qualquer bagagem.
O Jacinto regressou com as colas e o assédio continuou durante mais alguns momentos. Pouco depois fartou-se da nossa indiferença e foi à sua vida. Aproveitámos depois para comprar algumas guloseimas para levar connosco: café, massas, chocolates, tabaco e mais uma garrafa de 2ltrs de cola fresquinha!!
Já com as compras aviadas, regressámos ao acampamento para tratar do jantar. Cozi um punhado de massa espiral e acompanhei com o inseparável atum com tomate.
Tomámos um café, conversámos durante algumas horas, diverti-mo-nos com mais algumas histórias do infindável repertório de peripécias do Quim e, satisfeitos, fomos descansar!
Ahhh, aquele céu!...

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sábado, abril 29, 2006

Dia 16: A espera em Foum Zguid

Quando acordámos, a nossa primeira preocupação foi saber o estado do joelho do Bruno. Todos sabíamos que o programa do dia dependia exclusivamente da sua recuperação.
Infelizmente, não estava melhor. O joelho inchou bastante durante a noite e o Bruno tinha uma mobilidade muito limitada na articulação.
Restava levantar acampamento e seguir viagem para Foum-Zguid. Lá, o Bruno trataria de contactar o ACP e solicitar a assistência em viagem para resolver o problema. Não estava em condições de conduzir, portanto teria de ser repatriado, bem como a moto.
Eu cá tinha outras ideias. O Camelbak com todos os meus documentos não tinha reaparecido e estava, obviamente, determinado em encontrá-lo. Tinha a certeza que o tinha comigo quando chegámos ali. Mas, nestas situações, rapidamente descobrimos que até as mais sólidas certezas se esfumam.
Iria voltar atrás na pista até o encontrar, nem que tivesse de regressar ao local onde tínhamos acampado na noite anterior. E tinha que ser já. Antes que passasse mais gente pelas pistas.

Quando já nos preparávamos para arrancar...
- "De quem é esta mochila?" - pergunta o Bruno.
- "HAHHHHH!!!" - exclamei, como se me tivessem tirado uma tonelada de cima.
Aquando do transporte do equipamento para o local, alguém agarrou no Camelbak e colocou-o inadvertidamente sob os pertences do Bruno. Salvo pelo sino...

Eram cerca das 9h30 da manhã e a temperatura já estava escaldante. Antes de arrancar encharquei o vestuário na água do rio. Com a circulação de ar, durante o movimento, mantemos uma agradável sensação de frescura.
Partimos rumo a norte, em direcção à estrada entre Tata e Foum-Zguid, por uma pista estreita e com muita pedra irregular. Cerca de 25Kms depois alcançávamos o asfalto e acabava a tortura do Bruno. Daqui para a frente toleraria melhor a condução.

Por volta das 11h00 chegámos em Foum-Zguid. Já cá tinha estado o ano passado e conhecia razoavelmente a localidade, o oásis e o antigo quartel militar da Legião Estrangeira. Foum-Zguid nasceu da grande importância estratégica da localização geográfica que ocupa num desfiladeiro que atravessa o imponente Jbel Bani protegendo, num fértil vale onde confluem os oueds Lamhamid, Hmidi e El Faija, os avanços de salteadores vindos do deserto.

Reunimos à volta dumas mesas na esplanada do Café La Liberté, na praça principal, e o Bruno de imediato inicia o previsivelmente moroso processo de repatriamento. Alternando entre os sumos de laranja e as colas, preenchemos o que restava da manhã. Os contactos telefónicos do ACP eram constantes e, num deles, informaram o Bruno que estavam com dificuldades pois a empresa de reboques marroquina exigia um pagamento de 600€! Ora, o problema era deles. Essa, é a sua responsabilidade.

Chegou a hora de almoço. Hoje não dependíamos dos enlatados! Para mim, mandei vir brochettes du viande avec frites.
Acabámos de almoçar e ainda não havia dados concretos sobre a chegada da assistência.
Também havia alguma dúvida sobre o repatriamento do Bruno uma vez que o seu pai, o Frazão Duarte, andava também por Marrocos com uns amigos e talvez conseguisse boleia para Portugal.

Finalmente chegam as notícias que todos aguardávamos. O táxi que levaria o Bruno até à fronteira espanhola já estava a caminho, bem como o auto-reboque que levaria a moto a Casablanca, de onde seria repatriada. Agora era só uma questão de tempo até chegarem.

Aproveitámos para dividir entre todos a gasolina que a XR ainda tinha no seu enorme depósito. Depois, e já que estávamos numa localidade, aproveitámos para atestar as reservas de autonomia. Assim evitaríamos passar por Tata e seguiríamos o mais possível junto à fronteira.
Comprámos o pão, água e algumas peças de fruta. Depois, à vez, fomos à estação de serviço à entrada da localidade para atestar os depósitos, os jerricans e efectuar alguma manutenção básica, como lubrificar a corrente e limpar o filtro de ar.

Tentava apenas limpar bem a corrente. Na falta de mangueira de água na estação de serviço, recorri à mangueira de ar comprimido, com o qual tentava remover o máximo de poeira e detritos antes de colocar o lubrificante. Como tenho o descanso central, é muito mais fácil colocar a moto a trabalhar e engatar a primeira velocidade.
Enquanto executava a operação, distraidamente, a mangueira tocou no pneu e ficou presa num dos tacos, começando a enrolar descontroladamente em torno do eixo da roda. Antes que tivesse tempo de me erguer e desligar o motor, já a mangueira tinha esticado e arrancado violentamente os frágeis apoios que fixavam os tubos de ar, estes metálicos, à parede! Opppsss...

Consegui desenrolar aquele imbróglio da roda e ainda disfarçar os estragos nas fixações antes que alguém desse por isso. Terminei a limpeza, lubrifiquei a corrente. Soprei o filtro de ar e voltei ao nosso quartel-general na esplanada da praça principal.

Por volta das 16h30, chega uma carrinha Peugeot 505 Break à praça. Tinha todo o aspecto de ser o táxi que aguardávamos. O condutor parou o veículo e dirigiu-se a um dos cafés da praça. Pouco depois aproxima-se de nós e pergunta que é o cliente. O Bruno fintava-o já com olhar desconfiado.
Ao telemóvel, dizia que não entrava naquele táxi. Não sairia dali para lado nenhum com o marroquino! Fartámo-nos de rir com a situação!
Perto das 18h00, já nós o tínhamos convencido a acompanhar o taxista, chegou o auto-reboque. Carregámos a moto e tratámos da burocracia, sempre sob o olhar apreensivo e desconfiado do Bruno. Fosse como fosse, ele não queria perder a moto de vista.

Às 18h30 estavam todos prontos para partir. O Bruno, finalmente, despede-se de nós e entra no táxi. O taxista, inquieto com a espera prolongada, arranca imediatamente mas, os dois tripulantes do auto-reboque, ainda tencionavam petiscar qualquer coisa antes da longa viagem para Casablanca.
Poucos minutos depois, o táxi surge de novo na praça! O Bruno, ao se aperceber que o auto-reboque não os seguia, forçou o taxista a regressar à praça! Simplesmente hilariante!

Pouco depois, os tripulantes do auto-reboque estavam prontos a partir. E lá se foi o Bruno e a sua companheira!
Enquanto decidíamos o nosso programa, o Quim, que já conhecia perfeitamente a localidade, foi ao Auberge Iriki e encomendou-nos o jantar. A especialidade é cuscus e, como demoraria algum tempo a preparar, aguardámos na esplanada até ao pôr-do-sol.
A noite caía veloz e já não faríamos muitos quilómetros nesse dia. Decidimos que após o repasto regressaríamos ao local de pernoita anterior, junto ao Oued El Mellah, e lá acamparíamos novamente.

À hora combinada comparecemos no Auberge Iriki, um albergue modesto mas muito asseado e hospitaleiro - honestamente é a melhor pensão em Foum-Zguid, se não a única - numa travessa junto à saída sul da localidade.
Colocámos as motos na garagem, um pátio interior coberto onde já repousavam algumas motos de cross, e subimos à sala de refeições.
Respeitando a tradição descalçámos as botas, que ficaram junto à entrada. Alguns turistas e famílias rodeavam 3 ou 4 mesas. Recordo-me que senti algum embaraço pelo odor emanado pelas nossas peúgas. Mas, enfim, nada podíamos fazer!

Já sentados em redor da pequena e baixa mesa redonda, sobre largos e confortáveis bancos almofadados, começámos o repasto com a apetitosa e alimentícia harira.
A harira é a sopa tradicional marroquina. É entrada obrigatória ao jantar, durante o Ramadão, para quebrar o jejum do dia. Em algumas cidades é também servida a parentes e amigos em ocasiões especiais, como na manhã seguinte após o casamento.
Não obstante, pode ser preparada e consumida em qualquer altura, embora muitas famílias prefiram manter a tradição e servi-la apenas nessas ocasiões.
Nós preferimos claramente a abordagem mais liberal, pois só assim usufruíamos desta iguaria deliciosa!
Generosamente, fomos convidados a repetir a dose. Entretanto, encomendei uma brochette para acompanhar o cuscus. Confesso que, após a incessante dieta de atum, estava mesmo com saudades de fincar os dentes na carne... de carneiro!
Para rematar, umas rodelas de laranja com canela e um café marroquino.
Agradecemos a hospitalidade e deixámos Foum-Zguid. Tínhamos 50Kms de asfalto para cobrir até à entrada em pista. Depois, mais 25Kms de pedra e pó até casa.

Seria talvez umas 0h00 quando chegámos à nossa praia fluvial. Sem demoras, montámos o acampamento e recolhemos para descansar.
Apesar de tudo o dia tinha sido bastante agradável e, tendo em conta a possível complexidade da situação, tudo acabou por correr pelo melhor. Também aqui uma palavra de apreço pelo esmerado trabalho do ACP.
Não conseguia deixar de sorrir cada vez que pensava no Bruno. Por onde andaria, a esta hora, à mercê do seu novo companheiro marroquino? Só ele sabe... :)

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sexta-feira, abril 28, 2006

Dia 15: Do Oued En N'am ao Oued El Mellah

O Homem, à semelhança de qualquer outro animal, é um ser de hábitos. O presente formata constantemente o futuro, tal como o passado já formatou o presente. Somos capazes de viver de qualquer forma, em qualquer lado, de qualquer coisa... e sobreviver. Assim tenhamos tempo de formatar os hábitos.
Felizmente, ao contrário de muitos outros animais, a nossa formatação é muito rápida. Tão rápida que em 15 dias até nós, habituados aos confortos-padrão do mundo ocidental, já estamos confortavelmente habituados a dormir no chão; a viver de enlatados; a dispensar o banho matinal; a montar e desmontar a casa em 15 minutos; a andar sempre de mãos sujas; a vestir a mesma roupa; a esfregar mal os dentes; a defecar de cócoras; a lavar o que podemos, onde podemos ou a passar 12 ou mais horas em cima da moto sem o mínimo resquício de cansaço.

Mais uma noite descansada. Mais uma casa arrumada.
Sem demoras, retomámos a pista no local onde a tínhamos abandonado. Prosseguimos tranquilamente sobre o solo pedregoso, desfrutando da frescura do ar da manhã e da amplitude de horizontes proporcionada pela larga planície. Alguns quilómetros depois chegámos à Air Sidi Abu er Rahmane, um oásis de onde brota uma nascente de águas cristalinas. Aproveitámos para saciar a sede e atestar algumas garrafas.
No local, além das inúmeras rãs residentes, encontravam-se alguns locais e também um jipe com turistas.

Após breves minutos de contemplação, por entre monólogos surdos das jovens vendedores de souvenirs, continuámos em direcção ao Erg Chegaga.
Enquanto contornávamos a enorme extensão de dunas, pela pista imediatamente a norte, parámos à sombra dumas acácias. Aproveitei a pausa para me tentar aproximar um pouco mais das dunas.
Percorri cerca de dois quilómetros fora de pista, em direcção às dunas, e parecia que nunca mais lá chegava. Consternado, regressei. Não queria que o grupo perdesse tempo por minha causa. Tive de me consolar com a miragem ainda distante daquelas belas silhuetas douradas.
Estávamos já muito perto do Lac Iriki e, escassos momentos depois, voávamos a 130Km/h sobre aquela vastidão surpreendentemente plana e poeirenta. Aqui não há uma pista para seguir. Há mil, um milhão... é só escolher a direcção! A velocidade, essa, tem limite: aquele que a capacidade do motor e da aderência dos pneus ao solo impuserem. Fantástico!
A meio do lago, as pequenas dunas de areia proporcionaram alguns minutos de brincadeira... quando não eram excessivamente moles!

Aproximava-se rapidamente o meio dia e, com ele, a hora de almoço. Recolhemos sob uma acácia frondosa e tratámos de comer. Mais uma vez, fiquei-me por uma lata de atum com tomate, acompanhada por um naco de pão e rematada com uma laranja.
Após a breve refeição, retomámos o caminho e abandonámos as margens do seco Lac Iriki. Seguíamos agora em direcção à fronteira, para Sul, aqui delimitada pelo Wad Draa.

O Oued Draa, o maior rio de Marrocos, estende-se ao longo de cerca de 1100Km e é originado pela confluência do rio Dadés e do rio Imini. Corre desde as montanhas do Alto Atlas para sul, até Tagounite, seguindo depois para oeste até desaguar no Atlântico, um pouco a norte de Tan-Tan.
Durante a maior parte do ano está seco após Tagounite, sendo indispensável na irrigação de culturas hortícolas e palmeirais ao longo do seu curso.

Um pouco antes do Draa, encontrámos uma antiga pista do Dakar. Inconfundível. Balizada. E o melhor de tudo, seguia na direcção do azimute que havíamos traçado. Sem mais demoras, foi por ali que continuámos.


Os quilómetros passaram rapidamente. Calcorreámos zonas rápidas de terra batida, algumas de chapa ondulada, partes de muita pedra e alguns troços de areia de baixa dificuldade.
Por volta das 15h30 chegámos às margens do Oued El Mellah. O calor fazia-se sentir, aparte de estarmos imundos, e o local era ideal para ir a banhos. Mais depressa feito do que dito... e já estávamos de molho.

As margens do rio, arenosas, estavam cobertas dum mineral esbranquiçado e granuloso. Parecia-me ser sal. Até haviam torrões! Decidi não colocar a teoria à prova.
De seguida foi a vez de lavar a roupa interior, acumulada nos últimos dias, aproveitando a vegetação circundante para a pendurar a secar.
E por ali ficamos umas boas duas horas a descontrair.

Por volta das 17h30 decidimos prosseguir. Seguimos em direcção a uma pista que atravessava o leito do oued, poucas dezenas de metros para sul , através duma ampla bacia de grandes pedras roliças.
O Bruno, lá na frente, entrou com demasiada confiança e esbarrou numa pedra maior. Desequilibrou-se e caiu para o lado. Apesar das protecções, embateu violentamente com o joelho noutra pedra e ficou-se a queixar.
- "Aleijaste-te?" - perguntámos apreensivos.
- "Epá... uma beca!" - respondeu consternado.
Com esta reposta percebemos imediatamente que a situação era mais séria do que poderia parecer. Normalmente, quando caímos, temos sempre tendência a erguer-nos rapidamente e, orgulhosamente, a disfarçar as dores. Para o Bruno responder "uma beca", a situação tinha de ser séria!

A noite aproximava-se. Estávamos a cerca de 25Kms do asfalto e a pouco mais de 75Kms de Foum-Zguid mas o Bruno, modestamente, já só pedia um quarto de Hotel e gelo!
Decidimos permanecer ali nessa noite para aguardar a evolução da lesão, avaliando na manhã seguinte se o Bruno reunia as condições físicas para continuar.
Entretanto, aproximou-se uma coluna de 3 jipes Toyota com matrícula francesa. Deram algumas voltas pela zona e estacionaram, atrás dumas dunas, a cerca de 300m do nosso local.

Começávamos a montar acampamento, junto ao leito do rio, quando dei pela falta do meu Camelbak. Não seria preocupante não fosse eu ter os documentos todos lá dentro! Perguntei se alguém o tinha visto, mas as respostas eram negativas. Comecei de imediato a percorrer toda a área por onde tinha passado. Lembrava-me de o ter às costas quando arrancámos e também de o ter tirado enquanto auxiliava o Bruno. Mas não o conseguia ver em lado nenhum! Raios... aquilo não é assim tão pequeno!

Já com o Quim envolvido na operação de busca, e depois de termos percorrido novamente os cerca de 500m de extensão por onde tínhamos passado, decidimos ir perguntar aos franceses se, por acaso, não o teriam visto ou recolhido.
- "No... nous ne l'avons pas vu." - responderam, após breves instantes de conferência.
Eram 3 casais de meia idade. Já tinham o acampamento montado com uma pequena cozinha, sala de jantar, uma tenda WC e - imagine-se - um chuveiro! Isto sim é luxo!

Regressámos ao nosso modesto acampamento e enquanto montava a tenda, matutava já uma forma de resolver o grave problema da documentação...

Já com a casa instalada, preparámos o jantar. Saciei-me com uma dose reforçada de papa Cerelac e terminei com um café.
Já sob a habitual imponência da cintilante abóbada celeste, recolhemos aos aposentos para mais uma tranquila e silenciosa noite no deserto.

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quinta-feira, abril 27, 2006

Dia 14: De Tagounite ao Oued En N'am

A azáfama começou cedo - acordei ao som do burburinho matinal. Abri a tenda e espreitei lá fora. Já estavam todos a tratar do pequeno-almoço sob o olhar atento e curioso dos nossos anfitriões marroquinos. Preguiçosamente aprontei-me e saí.

Enquanto tomava o pequeno-almoço, empunhando a gamela bem atestada de Cerelac, ouvia o Quim falar sabiamente acerca da necessidade de guardar e inspeccionar de manhã as vestes e botas antes de as colocar pois, sendo locais particularmente quentes e acolhedores, poderiam bem ser seleccionados por algum escorpião mais incauto como local de pernoita.
A conversa despertou-me a atenção para as dezenas de rastos marcados na areia. Não havia dúvidas que eram rastos de insectos. Já tinha visto rastos semelhantes anteriormente... provavelmente seriam escaravelhos, talvez mesmo escorpiões.

Findo o repasto começámos a desmontar as tendas e, assim que o Alex ergue a sua do solo, um escorpião rastejou apressadamente abrigando-se junto debaixo duma pedra.
Pequeno e alaranjado, ainda era júnior. Mesmo assim teria, talvez, poderio suficiente para causar sérios problemas a uma potencial vítima... felizmente, não chegou a nenhum de nós.
Assim que os militares se aperceberam do que observávamos, fizeram o que tinham a fazer. Para sua própria segurança.
Após agradecermos a hospitalidade dos nossos anfitriões e arrancámos velozmente para Este, rumo a Tagounite, através duma pista rápida com algumas secções de areia que se estendia ao longo da ampla bacia desértica. Pouco depois, diante de nós, a geografia tornava-se menos monótona. Alguns acidentes permitiam que ascendêssemos através de passos sinuosos, oferecendo-nos perspectivas maravilhosas sobre a imensa vastidão estéril onde nos encontrávamos mergulhados. A pista semi-arenosa deu lugar a outra, de terra batida ladeada de xisto, bastante bem conservada e a coluna progredia num ritmo confortável.

Alguns instantes depois, há medida que nos aproximávamos do oued Draa, surgiam as primeiras habitações junto aos palmeirais. Estávamos já nos arredores de Tagounite e as pistas começavam a divergir em quase todas as direcções.
Após alguma indecisão sobre a pista a tomar lá disparámos todos em direcção ao aglomerado residencial. Ao atravessar a pequena localidade, Oulad Youssouf já nas margens do oued, convergimos junto a uma ponte. Só o Jacinto não aparecia. Esperámos um pouco sobre a ponte mas, sem sinais do Jacinto, o Ferreira e o Tiago regressaram à localidade para ver se o avistavam.
Não era preocupante. Estávamos a muito poucos quilómetros de Tagounite e, com o à vontade que o Jacinto demonstrava na comunicação com os locais, facilmente se orientaria até ao nosso destino. Progredimos.

Chegámos a Tagounite com uma fome infernal. A primeira coisa a fazer, como sempre, era escolher uma esplanada para esticar as pernas e beber uma cola fresquinha... na medida do possível! A primeira esplanada que avistámos já estava reservada... o Jacinto já tinha tomado posse administrativa do local!

O restante pessoal foi chegando e começámos a pensar no repasto e logistica para os próximos dias. Encomendámos umas tagines no Restaurant du Sud e dispersámos pela localidade, cada um em busca do que precisava.

Fiz as minhas compras e regressei ao restaurante para petiscar. O Quim e o Ferreira tinham-se enfiado numa oficina de motorizadas. O Ferreira observava, divertido, enquanto um marroquino vulcanizava a câmara de ar. Ao que constou, tinha furado enquanto procurava o Jacinto! O Quim explicava a outro empregado que precisava duns pingos de solda nos apoios dos depósitos traseiros, que já tinham estalado quase todos com a fadiga provocada pelo peso e vibração. Engenhosamente, lá soldaram os apoios e arranjaram uma solução mais duradoura apoiando os depósitos um no outro através dum veio transversal. O Quim estava satisfeito, embora um pouco reticente, com o resultado alcançado. Enfim, era a solução possível.

O Alex decidiu partir após o almoço. Tagounite usufrui de um bom acesso asfaltado para Norte, via Zagora, e era uma boa oportunidade de ele arrancar rumo a Portugal sem ter de dar muitas voltas. Despediu-se e partiu, deixando-nos ainda a descontrair na esplanada do Cafe du Sud.

Desconheço outra forma de conhecer pessoas que não seja partilhando incessantemente um pedaço de vida com elas. É muito diferente de reconhecer alguém no emprego, no bairro ou na escola com quem até se possam partilhar algumas horas de conversa por dia.
Conviver com esta intensidade, num meio que nos pode ser estranho ou submetidos à adversidade, por vezes eminente, expõe-nos flagrantemente ao exame de quem connosco priva. Isso revela detalhes, facetas e pormenores de carácter que marcam determinantemente a diferença entre mais um colega ou vizinho e um potencial amigo e companheiro para as aventuras de uma vida.
O Alex primou ao longo das semanas que partilhámos ininterruptamente pela boa disposição, pela serenidade e constância emocional e pela acutilante e mordaz perspicácia, sempre com a necessária dose de inteligência e humor que mantêm as conversas e os serões bastante animados. Com a sua partida, ficámos todos menos ricos.

Pouco depois estávamos prontos a continuar. Com gasolina e mantimentos para 3 ou 4 dias de pista, rumámos a Noroeste em busca duma passagem através da Hassan Ou Brahim, uma escarpada muralha natural que nos bloqueia a progressão para Sudoeste. Durante alguns quilómetros circulámos hors piste (fora de pista), batendo a planície a norte de Tagounite em busca de trilhos. Pouco depois, demos com uma pista bastante marcada de terra batida e pedra.
Eu fechava a coluna que seguia relativamente dispersa e foi com alguma surpresa que, quando nos reunimos numa biforcação, o Tiago já não estava entre nós.
Esperamos um bocado enquanto o Quim regressou, pela pista que tínhamos acabado de percorrer, em busca de sinais do Tiago. Passou, talvez, meia hora até surgirem os dois vultos no horizonte. O Tiago tinha ficado numa curva onde deveríamos passar, mas nós devemos ter seguido outra pista paralela e ele não nos viu. Já quando regressavam ao nosso encontro, um dos seus dois jerricans caiu e ficou irrecuperável - tinha agora menos 5L de autonomia.

O Sol descia sobre o horinzonte à medida que progredíamos paulatinamente em direcção aos amplos espaços do sul marroquino. O solo poeirento e pedregoso, coroado por uma multidão progressivamente crescente de pequenas acácias retorcidas, preenchia de um tom caramelizado a amena atmosfera envolvente. Na distância, diante de mim, erguia-se a coluna de pó, deixada pela passagem das motos, pairando tranquila, difusa e cintilante sob o suave toque dourado de uma luz celestial. A sós com os meus pensamentos, mergulhado no silêncio absurdo que só se obtem num fim de outro mundo ou num estado de semi-consciência routinada pelo zoar monótono das 3500rpm, distante e alheio a todo o resto duma vida, a todo o resto deste mundo, entranhei aquele momento como tudo o que existia. E nada mais era preciso.
Foram escassos minutos... mas podiam bem ser longos anos. Uma emoção fugaz e inexplicável brota do ser nestes momentos. Um sentimento de união, de todo, de completude e complementaridade, tão avassalador quanto efémere. Não o sei descrever mas, felizmente, consigo-o sentir.
Não tínhamos ainda avançado muitos quilómetros quando encontrei o Jacinto parado na pista.
-"Furei à frente..." - disse, consternado.
Imediatamente iniciámos a tarefa da reparação como se esta já tivesse sido codificada nos genes. Aos poucos os mais avançados foram reaparecendo até que já só faltava o Quim. Alguns minutos depois, a coluna de poeira que se erguia subtilmente no horizonte delatava a sua aproximação veloz ao grupo.
Ainda não tinha parado a moto e já exibia um sorriso rasgado! Não pelo sucedido, mas pela satisfação pessoal de ter equipado mousses nas suas rodas!
Durante as duas primeiras semanas de viagem, através das trialeiras rochosas do Rif e pistas pedregosas do Rekkam, ninguém furou. O Quim já questionava o investimento avultado que tinha feito nas mousses. Mas os últimos dois dias, com o número anormal de furos registados, tinham-lhe provado cabalmente que tinha valido a pena tê-las colocado. Estava, na sua maneira muito própria, satisfeito com a sua opção! Eu, particularmente, não o podia censurar...

Demos por concluída a operação já convencidos que a próxima tarefa era encontrar um local para pernoitar. Arrancámos de olhos fixos na paisagem circundante em busca de qualquer característica geográfica ou biológica que nos pudesse servir de abrigo; dos rigores da noite mas, fundamentalmente, da possibilidade remota de passarem transeuntes mal intencionados naquela pista.
Quase de imediato surgiu-nos um trilho mal marcado que divergia em direcção a um pequeno aglomerado de rochedos. Seguimos nessa direcção e, algumas centenas de metros depois, encontrámos o local onde teria acampado recentemente alguma família de nómadas.
Instalámos o nosso bivouac e jantámos. Mais uma vez, fiquei-me pelo atum com tomate, empurrado por um naco de pão e rematado com duas laranjas, algumas colheres de compota de morango e o aroma familiar dum café.

A última memória que guardo desse dia é uma visão sublime do imenso mar de estrelas que lenta, quase imperceptivelmente, desfilava no seu eterno rodopiar sobre as nossas cabeças, enquanto trocávamos histórias pela noite dentro.

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quarta-feira, abril 26, 2006

Dia 13: Em rota para Tagounite

Mais um dia que começa! - Após o pequeno-almoço reforçado com a bela da Cerelac, passo a publicidade, deixámos a protecção da duna que confortavelmente nos acolheu e rumámos a Sul através da extensa bacia do oued El Maharch.
Uma imensa planície estendia-se diante de nós. Plana, tão plana que nos permitia rolar em qualquer direcção a velocidades proibitivas. O solo seco e nivelado, embora duro, pedregoso e com algumas bolsas de areia, proporcionava a tranquilidade necessária a apreciar aquelas paragens com descontracção.
Pouco depois, erguia-se no horizonte a silhueta dos montes que marcam a fronteira com a Argélia. Cerca de 40 Kms depois, após a confluência com o oued Chouiref, alcançámos o estreito desfiladeiro entre o jbel El Mrakib e o jbel Maharch, porta de passagem para a bacia do oued El Ma'der. A Sul deste oued, ergue-se o jbel El Mziouida e, para lá deste, já é território argelino.
Seguimos para ocidente ao longo da fronteira, pela bacia do El Ma'der, através de estreitos carreiros sinuosos que rasgavam o solo duro e poeirento, contornando a encosta escarpada do jbel El Mziouida.
Na planura seca da bacia, uma manada de dromedários banqueteava-se com a escassa vegetação rasteira. São animais majestosos. De pose altiva e serena, observavam com indiferença a passagem das motos através das suas pastagens.

Prosseguimos rumo a Sudoeste. Pela frente tínhamos agora uma vasta região arenosa, torrada impiedosamente pelo Sol, e pontuada por montes rochosos que, cobertos de areia, se assemelhavam a enormes dunas.
Subimos ao topo de um deles, que inevitavelmente nos barrava a progressão, para avaliarmos melhor a direcção a seguir. Do outro lado, estendia-se a vastidão desértica do vale do oued Bou Harara. Relaxámos um pouco os olhos sobre aquela monótona e imponente paisagem enquanto o Quim explorava uma passagem para o vale.
Alguns minutos depois, surgiu com a solução e descemos através duma íngreme reentrância na encosta pedregosa do monte, e retomávamos a conquista dos mais de 100Kms que, em linha recta, ainda nos separavam de Tagounite.
Por volta das 13:15 avistei um poço e decidi parar, aproveitando a frescura do local para podermos almoçar. Nas imediações, dois pastores nómadas saciavam a sede dos seus rebanhos de cabras. Parei junto do poço e cumprimentei os pastores.
A escassas dezenas de metros um berbere repousava junto duma motorizada de cross que se assemelhava às comuns DT50. Apressou-se a vir ter comigo e, com um ar esperançado, perguntou: "Essence?!..."
Entretanto chegaram os restantes e lá dispensámos alguma gasolina ao homem.
-"C'est sec!" - alertámos. Mas não havia problema. Eles andam sempre com uma garrafa de óleo atrás! Feita a mistura, o berbere lá abasteceu a montada.

Começámos e repasto sob o olhar atento dos nómadas e do berbere. Ficaria mal não partilharmos e lá lhes oferecemos umas latas de atum, pão e fruta.
Enquanto petiscava uma lata de atum com tomate, divertíamo-nos com o comportamento dos bodes do rebanho que arrojadamente lutavam, berravam e exerciam a sua supremacia em torno das cabras receptivas. Perante a resistência feminina, organizavam-se aos três, cercando freneticamente a vítima tentando consumar as suas pretensões sexuais!
Por volta das 15H, decidimos prosseguir. Quando me preparava para arrancar, deparei-me com o pneu de trás vazio. Raios... - pensei - Tantos dias de TT por duras pistas trialeiras, com um pneu de trás na lona, nunca furou! E agora aqui, numa longa pista arenosa com um pneu traseiro novo, um furo! Isto há coisas...

Desmontei a roda e, enquanto reparávamos a câmara de ar discutíamos com os nómadas a viabilidade de continuar ao longo do oued Ech Cheikh, através do vale Khoua Trik. Segundo eles não era possível pois a pista através desse vale segue rumo a território argelino. A pista indicada para Tagounite passava um pouco mais a Norte. Resolvemos acatar a sugestão e prosseguimos a jornada, regressando escassas centenas de metros atrás para reencontrar o vale do Bou Harara.
Escassos cinco quilómetros volvidos um novo furo, desta feita na roda da frente! Um azar nunca vem só! - e começava assim um teste à validade dos ditados...

A roda da frente teimava em não sair. O eixo estava estupidamente calcinado e só deu sinais de movimento quando, de forma dócil, começou a sentir as pancadas dum martelo! Uma pancada ligeiramente ao lado e... "AAAIIII! F%#@§€!!!" - De repente, o coração transferiu-se para a ponta do polegar...

Entretanto um jipe marroquino aproximou-se. Um homem de meia idade, saiu da viatura e identificou-se como guarda de caça! Imediatamente tentou ajudar, estendendo uma ampla cobertura sobre o chão para que pudessem trabalhar confortavelmente! Pudessem eles... pois eu ainda andava às voltas agarrado o dedo! ;)

Pouco depois erguia-se uma coluna de poeira na distância. Alguns minutos depois, começaram a passar as primeiras motos.
Seria talvez umas 10 cabras do monte, na sua grande maioria, KTM. Escusado será dizer, claro está, que pouco tempo depois passou o carro de apoio à coluna!

Terminámos a reparação e prosseguimos.
Não demorou muito a alcançarmos a viatura de apoio da coluna alaranjada. No preciso momento em que ultrapassava o jipe, numa pista paralela, perdi subitamente a estabilidade da direcção e, com alguma dificuldade, consegui parar a moto de forma convencional! Não há duas sem três! - "Nem acredito nisto..."
A roda da frente estava novamente flácida...

Quando o Alex regressou, já eu estava furiosamente a desmontar o pneu. Uma câmara de ar reforçada - nova - e nem 3Kms tinha rodado! Não senti qualquer trancada em pedras ou buracos, a única explicação para os dois enormes cortes laterais é ter ficado trilhada entre a jante e o pneu...

Passados alguns momentos, regressava o resto do grupo após amena cavaqueira com os elementos da coluna alaranjada, quase todos italianos, parados escassos quilómetros mais adiante.
Ao que parece, os italianos tinham ficado perplexos com as nossas montadas, particularmente com os pneus do Jacinto! :)
"Guardi... gomma di strada!!"
"UOOOHHHH!..." - exclamavam em uníssono enquanto um apontava aos Trailwings do Jacinto que, efectivamente, tinham feito as mesmas pistas que as suas ágeis e leves cabras do mato. A partir desse momento, o Jacinto ganhou um sonante cognome: o Gomma di Strada! :)

Se não mata, só nos torna mais fortes! - mais um ditado verificado. A perícia e rapidez na reparação de furos tinha evoluído drasticamente nas últimas duas horas! ;)

Ainda antes de arrancarmos, aproximou-se uma coluna de três jipes. Ostentavam todos matrícula portuguesa, fartura de autocolantes e uns farrapos que outrora terão sido bandeiras portuguesas. Inevitavelmente um deles, um Patrol pilotado por um típico "artista" lusitano de bigode espesso e cigarro em punho, seguia puxado por uma corda de reboque!
Da mesma forma com que se aproximaram assim desapareceram, sob uma densa nuvem de pó, em direcção a Tagounite.

Resolvida a questão, continuámos rumo a Sudoeste. Mas lamentavelmente, quanto a contra-tempos, não ficaria ainda por aqui. Cerca de 1Km depois, o motor começou a perder força até que se calou. Manifestava claramente falta de combustível mas, estando o depósito praticamente meio, a razão para mim era óbvia: só poderia ser a bomba. Troquei rapidamente a relé "caseira" e lá continuámos caminho!

A longa pista rectilínea era agora essencialmente pedregosa e ondulada, caracterizada pelo nefasto estilo "chapa de zinco", e uma autêntica ameaça à integridade dos rolamentos da caixa de direcção que, à falta de tempo, já tinham deixado Lisboa debilitados.

À medida que o sol tocava no horizonte, aproximávamo-nos também do momento de encontrar local de pernoita. Vários quilómetros depois, após termos dobrado a coluna de jipes portugueses, alcançámos o primeiro controlo militar a Este de Tagounite.
O posto situa-se sobre uma pequena elevação por onde passa a pista. Esta descreve uma curva apertada, entre montes, que oculta o pequeno edifício até chegarmos bem perto da corrente que, qual cancela, atravessa a pista.
Os militares envergando o "tradicional" uniforme informal - leia-se t-shirt, raibantes e chinelos - revelavam muita descontracção e simpatia. Durante o controlo à documentação imediatamente se instalou um clima amigável e, dado que se aproximava o crepúsculo, fomos convidados a instalármo-nos no oásis adjacente e a tomarmos um chá. Aceitámos entusiasticamente!

Descemos a curta pista arenosa até ao oásis para prepararmos o acampamento.
Eis que... "PULGAS!" - exclama o Quim, prostrado junto da base de umas palmeiras. Debandámos uns bons metros para o outro lado!
No alto da encosta acentuada junto ao posto, onde pontifica a torre do depósito de àgua, o militar acenou oferecendo-nos do precioso líquido. Escalámos até junto do depósito e, na medida do possível, higienizámo-nos.
Enquanto montávamos as tendas dois militares desceram com um monte de lenha que reuniram para a fogueira. Entretanto, começámos a preparar o jantar. Mais uma vez o atum constituía o essencial da farta refeição disponível. Para finalizar, um pouco de doce de morango e uma laranja remataram o repasto.

Já mergulhados numa noite límpida e amena, sob uma cintilante abóbada celeste, reunímo-nos em torno do crepitar acolhedor da fogueira onde, revivendo os momentos mais intensos da viagem, partilhávamos um excelente chá preto e cigarros com aqueles simpáticos homens que, por uma noite, foram nossos anfitriões.

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terça-feira, abril 25, 2006

Dia 12: De Merzouga a Imzizoui

Tempo de partir. Convergimos à sala de refeições para, demoradamente, tomar o pequeno-almoço. Após a refeição farta - convenhamos que limitações não faltariam nos próximos dias - arrumámos o equipamento e deixámos o albergue já por volta das 10:30.

O céu estava limpo e a temperatura agradável. Descemos a Merzouga para apanhar a velha pista para Rissani. Começou por ser dura e pedregosa, depois atravessámos uma parte arenosa com algumas dunas, até chegarmos à poeirenta bacia do oued Ziz que nos conduziu até à localidade.

Tínhamos de abastecer de mantimentos e dirigímo-nos ao souk(mercado) onde comprámos essencialmente fruta, pão, conservas e àgua.
Estava na hora de almoço e decidimos aproveitar a ocasião para comer. Estacionámos na esplanada de um restaurante e pedimos tagines e cuscuz.

Deixámos Rissani, já quase a meio da tarde, com destino a Tagounite através duma pista dura e rolante, com bastantes passagens de areia, para Sudoeste. Ao longo dos amplos vales, a grandeza do sul extendia-se em todas as direcções. No horizonte erguiam-se planaltos que transpunhamos, ora através de estreitos desfiladeiros, ora ao longo de sinuosas trialeiras.
Ao fim da tarde já estávamos quase às portas do imenso vale de Imzizoui. O vento soprava intensamente e as colinas enrugadas refletiam a suave luz avermelhada do astro-rei. Parei para tirar umas fotos e a coluna prosseguiu. Alguns minutos depois, quando me lancei no seu encalce, o vento já tinha revolvido o fino pó que cobria o solo duro, eliminando os rastos das motos. Pouco depois, deparei-me num extenso vale com pistas a divergir em todas as direcções. Da comitiva, nem sinal... nem rastos.
Durante alguns minutos sondei as várias direcções possíveis em busca de traços... mas sem nenhum sucesso. Estava decidido a arrancar rumo a Tagounite mas, como provavelmente voltariam à minha procura, fiquei à espera mais alguns minutos.
Pouco depois, surge o Alex de trás duma duna. Tinham saída de pista através duma grande duna que barrava o acesso ao vale de Imzizoui e, devido ao vento, as marcas já tinham desaparecido.

Reunímo-nos pouco depois e, devido ao aproximar da noite, decidimos procurar lugar para ficar por ali. Mesmo à entrada do vale, bem desviada da pista, uma longa duna de areia proporcionava um boa protecção ao vento e pouco depois já estávamos a montar o acampamento.
Ao jantar tratei-me com uma latinha de atum com tomate, meloa e laranjas. Apesar da noite ventosa, o abrigo dunar oferecia-nos uma boa protecção e, rapidamente, recolhemo-nos aos aposentos para descansar - "AHHhhh! Já estava com saudades deste som!" - interrompido apenas pelo silvar do vento, o som do silêncio ecoava profundamente pelo vale. O melhor som do mundo.

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segunda-feira, abril 24, 2006

Dia 11: Descanso em Merzouga

Dia de descanso - como é normal, acordámos um pouco mais tarde. Lá fora o dia estava muito sombrio, frio e até - imagine-se - chovia no Erg Chebbi!! As dunas, geralmente avermelhadas, apresentavam as manchas negras do pó torrado humedecido pela precipitação.

Merzouga é uma aldeia berbére na vertente Sudoeste do Erg Chebbi, pequeno aglomerado de dunas a sul do vale de Taffilalet. Hoje em dia, Merzouga pouco conserva da pacatez e isolamento em que permaneceu durante muitas décadas. Agora, é ponto de passagem para quem pretende um contacto simplificado com o deserto.
Apesar de estar muito longe do isolamento de um verdadeiro deserto, ou da imensidão do grande Sahara, muitos acorrem aqui motivados pelo fascínio de percorrer as dunas de dromedário ou de dormir sob as estrelas num oásis.
O Erg Chebbi é vendido internacionalmente como parte integrante do deserto do Sahara o que, sem surpresa, o torna num produto apetecível ao turista ocidental que frequentemente acorre a Marrocos, sequioso de aventuras das mil-e-uma noites!
Obviamente, não é essa a motivação que nos traz aqui! :)
Além do florescente comércio local, a localidade oferece uma enorme variedade de albergues. Praticamente todos os habitantes trabalham, de alguma forma, para o turismo. Muitos vivem da interacção com o turista, seja através do comércio, seja através da oferta do serviço de guia pelas pistas circundantes.

Por hoje, ficamos por cá. Esperamos a chegada do segundo grupo!

Após o pequeno-almoço o tempo melhorou ligeiramente e iniciámos a manutenção das motos. Como em qualquer AT, que se preze, bastou lubrificar a corrente! ;)
Contudo, tinha outra tarefa para executar: ver-me livre do pneu que acartava à pendura desde Lisboa...
O pneu traseiro já saiu de casa praticamente careca mas a falta de tempo prolongou-lhe a vida indefinidamente. Com o pneu novo na bagagem, alguma oportunidade chegaria para o trocar!...
A oportunidade chegou. Desmontei a roda traseira e meia hora depois estava pronto a responder ao desafio do Quim: "Vamos almoçar a Rissani? Quero ir ver ali umas pistas pelo oued..." - siga!
Antes de sair, entregámos a roupa suja ao recepcionista, dispostos a pagar a alguém para a lavar!

O Tiago ainda andava cismado com o rolamento da direcção e decidiu permanecer no albergue para desmontar a moto. Deixámos o homem serenamente a trabalhar e partimos rumo a Rissani. Íamos bem levezinhos pois toda a tralha tinha ficado em casa. Na bagagem, agora, só a máquina e nada mais! ;)

Já passavam das 13:30 quando pousámos na esplanada de um restaurante, junto à entrada do Souk. Para variar, iríamos experimentar uma especialidade: pizza berbére!
Várias horas volvidas - pelo menos, foi o que nos pareceu aquela espera :) - eis que chega o excêntrico gourmet!
Afinal, não é mais que um pão berbére, um pouco maior que o normal, recheado de um refogado de carne e cebola e codimentado com uma panóplia de ervas aromáticas.

Após o respasto, abastecemos e deixámos Rissani progredindo para ocidente até alcançármos o oued Ziz. Parámos e, enquanto falávamos, aproveitei para colocar a carteira na mochila da máquina pois, provavelmente, saltar-me-ia do bolso...

Enveredámos pelos trilhos junto ao oued Ziz, em direcção a Erfoud. A pista era dura com algumas passagens de areias. Numa duna com meio metro, mandei-me pelos ares. Estranhamente, tive a sensaçao que algo tinha saltado mais que eu...
Reparei então que o Alex tinha ficado para trás. Quando o avistei percebi imediatamente que a minha máquina tinha aprendido a voar! Infelizmente, não tinha ainda aprendido era a aterrar...

Estupidamente, guardei a carteira e deixei a "#$%" da mochila escancarada! Pelo caminho, fui colecionando os destroços. Uma objectiva aqui, outro pedaço ali...
O Alex já andava a tentar fazer o puzzle do que tinha encontrado... Surpreendentemente, ainda trabalhava... Apesar de ter partido os dentes dos apoios da objectiva e de terem saltado bocados da carcaça, ainda tirava fotos! Do mal, o menos!... Enfim, logo se veria o efeito nas fotos quando chegasse a casa. :(

Continuámos pelas pistas agrícolas, através da fértil bacia do oued Ziz, até alcançarmos Erfoud. Depois, à falta de alternativas, regressámos circulando dentro um enorme canal de rega que nos levou novamente à saída entre Erfoud e Rissani.
Já em Rissani, contornámos a localidade pelo roteiro histórico e enveredámos pela antiga pista para Merzouga, agora abandonada.

Areia: geológicamente falando, matéria granular de classe compreendida entre o lodo e a gravilha. Vulgarmente constituida por sílica, a sua composição específica varia em função da geologia do local, ou seja, das rochas que lhe deram origem através de processos de erosão como o vento ou a chuva.
Duna: geográficamente falando, colina de areia formada por processos eólicos. Quando despida de vegetação, está sujeita a mudar de forma, tamanho e localização consoante a sua interacção com o vento. Existem diversas geometrias de dunas, definidas pela sua forma, e que resultam das características/direcções do vento no local. A mais alta duna do mundo é a Dune 7, com 383m, no deserto do Namib(Namíbia).
Cordão dunar: geográficamente falando, sequência de dunas normalmente alinhada em direcção perpendicular aos ventos dominantes. Nas regiões desérticas, os cordões podem ter centenas de quilómetros de comprimento e deslocar-se vários centímetros por dia, dependendo das condições climatéricas. Em larga escala, um cordão dunar apresenta um comportamento semelhante a uma onda no mar.
Erg: geográficamente falando, é uma grande àrea de deserto, relativamente plana, com pouca ou nenhuma vegetação, constituida fundamentalmente por areias móveis - sujeitas a interacção eólica. Erg é uma palavra àrabe que significa "campo de dunas". Científicamente, um Erg é uma àrea desértica com mais de 125Km^2 de areia móvel, que cubra mais de um quarto da superfície.
Sahara: palavra àrabe que significa deserto. Maior deserto do planeta Terra, com cerca de 7 milhões de Km^2, constituido por diversos Ergs como o Grand Erg Oriental na Argélia, o Erg Aoukar na Mauritânia ou o Ténéré no Niger. Compreendido entre o Atlântico a Ocidente, o Mar Vermelho a Oriente, as montanhas do Atlas e o Mediterrâneo a Norte e o Sudão e Vale do Niger a Sul. O Sahara é dividido em algumas regiões: Sahara Ocidental, Montanhas Ahaggar, Montanhas Tibesti, Montanhas Aïr (região de montanhas desérticas e altos planaltos), deserto Ténéré e deserto da Líbia (a região mais àrida). O ponto mais alto do Sahara é o Emi Koussi, com 3415m, localizado nas Montanhas Tibesti do norte do Chad.

Uma obcessão arenosa. Talvez possa ser assim definida a força inexplicável com que me atrai este elemento. Nenhum outro ambiente me fastina tanto no todo-o-terreno.
Na primeira vez que fiz fora de estrada, ainda a contar pelos dedos das mãos as semanas de experiência com a moto - e com motos - fui traumatizado por um encontro imediato de 3ºgrau com as pistas da Comporta. Contráriamente ao que seria de esperar, desenvolvi uma fixação pelo granulado difícil de compreender. Não posso ver a areia... à distância!
Teóricamente, o sul de Marrocos entra na geografia do grande deserto, mas a verdade é que pouco tem da verdadeira essência do Sahara. A vastidão desértica estende-se para lá da fronteira com a Argélia, deixando em Marrocos poucos e ínfimos Ergs, a saber: Chebbi, Lihoudi, Chegaga, Mghiti, Jerboia e Zemoul.

Circulávamos agora em direcção ao Erg Chebbi, o aglomerado de dunas mais extenso - e também o mais alto com a grand dune a atingir os 150m - de Marrocos.
A pista é, na generalidade, dura com passagens de areia. Engolida parcialmente pelas areias do Erg, proporcionava algumas dunas pequenas por onde nos divertíamos a saltar.
O céu continuava sombrio e começou a choviscar mas, à medida que nos aproximávamos de Merzouga, a nuvem provocadora ficou para trás.
Entre nós e Merzouga extendia-se agora um estreito cordão de dunas. O Quim, sensatamente, decidiu contornar a dificuldade mas eu andava mortinho para me meter em trabalhos...
Seguimos momentâneamente para norte, ao longo da periferia do cordão. Enquanto progredia pelas dunas, perdi-os de vista... já tinha uma boa desculpa para me enfiar pelo cordão a dentro! :)

Não chegou a um quilómetro... e alguns minutos depois alcancei o albergue. No pátio já estavam os novos reforços da comitiva: Luís Ferreira na DR600, Luís Jacinto na AT e Bruno Valadas na XR600!
Passados alguns minutos chegavam o Quim e o Alex e, enquanto não chegava a hora de jantar, ouvimos as peripérias que estes senhores tinham passado através dum Atlas criogénico! :)

O jantar começou com uma sopa de cuscuz maravilhosa, em dose dupla, antes de chegar a tagine de borrego. Estava tudo delicioso!
Recolhemos aos quartos, onde sobre a cama já repousava a nossa roupa lavada, já passava da meia-noite e preparámos o corpo para mais uma viagem dentro da viagem. Desta vez, através do grande Sul de Marrocos.

Percurso do dia

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