quarta-feira, abril 26, 2006

Dia 13: Em rota para Tagounite

Mais um dia que começa! - Após o pequeno-almoço reforçado com a bela da Cerelac, passo a publicidade, deixámos a protecção da duna que confortavelmente nos acolheu e rumámos a Sul através da extensa bacia do oued El Maharch.
Uma imensa planície estendia-se diante de nós. Plana, tão plana que nos permitia rolar em qualquer direcção a velocidades proibitivas. O solo seco e nivelado, embora duro, pedregoso e com algumas bolsas de areia, proporcionava a tranquilidade necessária a apreciar aquelas paragens com descontracção.
Pouco depois, erguia-se no horizonte a silhueta dos montes que marcam a fronteira com a Argélia. Cerca de 40 Kms depois, após a confluência com o oued Chouiref, alcançámos o estreito desfiladeiro entre o jbel El Mrakib e o jbel Maharch, porta de passagem para a bacia do oued El Ma'der. A Sul deste oued, ergue-se o jbel El Mziouida e, para lá deste, já é território argelino.
Seguimos para ocidente ao longo da fronteira, pela bacia do El Ma'der, através de estreitos carreiros sinuosos que rasgavam o solo duro e poeirento, contornando a encosta escarpada do jbel El Mziouida.
Na planura seca da bacia, uma manada de dromedários banqueteava-se com a escassa vegetação rasteira. São animais majestosos. De pose altiva e serena, observavam com indiferença a passagem das motos através das suas pastagens.

Prosseguimos rumo a Sudoeste. Pela frente tínhamos agora uma vasta região arenosa, torrada impiedosamente pelo Sol, e pontuada por montes rochosos que, cobertos de areia, se assemelhavam a enormes dunas.
Subimos ao topo de um deles, que inevitavelmente nos barrava a progressão, para avaliarmos melhor a direcção a seguir. Do outro lado, estendia-se a vastidão desértica do vale do oued Bou Harara. Relaxámos um pouco os olhos sobre aquela monótona e imponente paisagem enquanto o Quim explorava uma passagem para o vale.
Alguns minutos depois, surgiu com a solução e descemos através duma íngreme reentrância na encosta pedregosa do monte, e retomávamos a conquista dos mais de 100Kms que, em linha recta, ainda nos separavam de Tagounite.
Por volta das 13:15 avistei um poço e decidi parar, aproveitando a frescura do local para podermos almoçar. Nas imediações, dois pastores nómadas saciavam a sede dos seus rebanhos de cabras. Parei junto do poço e cumprimentei os pastores.
A escassas dezenas de metros um berbere repousava junto duma motorizada de cross que se assemelhava às comuns DT50. Apressou-se a vir ter comigo e, com um ar esperançado, perguntou: "Essence?!..."
Entretanto chegaram os restantes e lá dispensámos alguma gasolina ao homem.
-"C'est sec!" - alertámos. Mas não havia problema. Eles andam sempre com uma garrafa de óleo atrás! Feita a mistura, o berbere lá abasteceu a montada.

Começámos e repasto sob o olhar atento dos nómadas e do berbere. Ficaria mal não partilharmos e lá lhes oferecemos umas latas de atum, pão e fruta.
Enquanto petiscava uma lata de atum com tomate, divertíamo-nos com o comportamento dos bodes do rebanho que arrojadamente lutavam, berravam e exerciam a sua supremacia em torno das cabras receptivas. Perante a resistência feminina, organizavam-se aos três, cercando freneticamente a vítima tentando consumar as suas pretensões sexuais!
Por volta das 15H, decidimos prosseguir. Quando me preparava para arrancar, deparei-me com o pneu de trás vazio. Raios... - pensei - Tantos dias de TT por duras pistas trialeiras, com um pneu de trás na lona, nunca furou! E agora aqui, numa longa pista arenosa com um pneu traseiro novo, um furo! Isto há coisas...

Desmontei a roda e, enquanto reparávamos a câmara de ar discutíamos com os nómadas a viabilidade de continuar ao longo do oued Ech Cheikh, através do vale Khoua Trik. Segundo eles não era possível pois a pista através desse vale segue rumo a território argelino. A pista indicada para Tagounite passava um pouco mais a Norte. Resolvemos acatar a sugestão e prosseguimos a jornada, regressando escassas centenas de metros atrás para reencontrar o vale do Bou Harara.
Escassos cinco quilómetros volvidos um novo furo, desta feita na roda da frente! Um azar nunca vem só! - e começava assim um teste à validade dos ditados...

A roda da frente teimava em não sair. O eixo estava estupidamente calcinado e só deu sinais de movimento quando, de forma dócil, começou a sentir as pancadas dum martelo! Uma pancada ligeiramente ao lado e... "AAAIIII! F%#@§€!!!" - De repente, o coração transferiu-se para a ponta do polegar...

Entretanto um jipe marroquino aproximou-se. Um homem de meia idade, saiu da viatura e identificou-se como guarda de caça! Imediatamente tentou ajudar, estendendo uma ampla cobertura sobre o chão para que pudessem trabalhar confortavelmente! Pudessem eles... pois eu ainda andava às voltas agarrado o dedo! ;)

Pouco depois erguia-se uma coluna de poeira na distância. Alguns minutos depois, começaram a passar as primeiras motos.
Seria talvez umas 10 cabras do monte, na sua grande maioria, KTM. Escusado será dizer, claro está, que pouco tempo depois passou o carro de apoio à coluna!

Terminámos a reparação e prosseguimos.
Não demorou muito a alcançarmos a viatura de apoio da coluna alaranjada. No preciso momento em que ultrapassava o jipe, numa pista paralela, perdi subitamente a estabilidade da direcção e, com alguma dificuldade, consegui parar a moto de forma convencional! Não há duas sem três! - "Nem acredito nisto..."
A roda da frente estava novamente flácida...

Quando o Alex regressou, já eu estava furiosamente a desmontar o pneu. Uma câmara de ar reforçada - nova - e nem 3Kms tinha rodado! Não senti qualquer trancada em pedras ou buracos, a única explicação para os dois enormes cortes laterais é ter ficado trilhada entre a jante e o pneu...

Passados alguns momentos, regressava o resto do grupo após amena cavaqueira com os elementos da coluna alaranjada, quase todos italianos, parados escassos quilómetros mais adiante.
Ao que parece, os italianos tinham ficado perplexos com as nossas montadas, particularmente com os pneus do Jacinto! :)
"Guardi... gomma di strada!!"
"UOOOHHHH!..." - exclamavam em uníssono enquanto um apontava aos Trailwings do Jacinto que, efectivamente, tinham feito as mesmas pistas que as suas ágeis e leves cabras do mato. A partir desse momento, o Jacinto ganhou um sonante cognome: o Gomma di Strada! :)

Se não mata, só nos torna mais fortes! - mais um ditado verificado. A perícia e rapidez na reparação de furos tinha evoluído drasticamente nas últimas duas horas! ;)

Ainda antes de arrancarmos, aproximou-se uma coluna de três jipes. Ostentavam todos matrícula portuguesa, fartura de autocolantes e uns farrapos que outrora terão sido bandeiras portuguesas. Inevitavelmente um deles, um Patrol pilotado por um típico "artista" lusitano de bigode espesso e cigarro em punho, seguia puxado por uma corda de reboque!
Da mesma forma com que se aproximaram assim desapareceram, sob uma densa nuvem de pó, em direcção a Tagounite.

Resolvida a questão, continuámos rumo a Sudoeste. Mas lamentavelmente, quanto a contra-tempos, não ficaria ainda por aqui. Cerca de 1Km depois, o motor começou a perder força até que se calou. Manifestava claramente falta de combustível mas, estando o depósito praticamente meio, a razão para mim era óbvia: só poderia ser a bomba. Troquei rapidamente a relé "caseira" e lá continuámos caminho!

A longa pista rectilínea era agora essencialmente pedregosa e ondulada, caracterizada pelo nefasto estilo "chapa de zinco", e uma autêntica ameaça à integridade dos rolamentos da caixa de direcção que, à falta de tempo, já tinham deixado Lisboa debilitados.

À medida que o sol tocava no horizonte, aproximávamo-nos também do momento de encontrar local de pernoita. Vários quilómetros depois, após termos dobrado a coluna de jipes portugueses, alcançámos o primeiro controlo militar a Este de Tagounite.
O posto situa-se sobre uma pequena elevação por onde passa a pista. Esta descreve uma curva apertada, entre montes, que oculta o pequeno edifício até chegarmos bem perto da corrente que, qual cancela, atravessa a pista.
Os militares envergando o "tradicional" uniforme informal - leia-se t-shirt, raibantes e chinelos - revelavam muita descontracção e simpatia. Durante o controlo à documentação imediatamente se instalou um clima amigável e, dado que se aproximava o crepúsculo, fomos convidados a instalármo-nos no oásis adjacente e a tomarmos um chá. Aceitámos entusiasticamente!

Descemos a curta pista arenosa até ao oásis para prepararmos o acampamento.
Eis que... "PULGAS!" - exclama o Quim, prostrado junto da base de umas palmeiras. Debandámos uns bons metros para o outro lado!
No alto da encosta acentuada junto ao posto, onde pontifica a torre do depósito de àgua, o militar acenou oferecendo-nos do precioso líquido. Escalámos até junto do depósito e, na medida do possível, higienizámo-nos.
Enquanto montávamos as tendas dois militares desceram com um monte de lenha que reuniram para a fogueira. Entretanto, começámos a preparar o jantar. Mais uma vez o atum constituía o essencial da farta refeição disponível. Para finalizar, um pouco de doce de morango e uma laranja remataram o repasto.

Já mergulhados numa noite límpida e amena, sob uma cintilante abóbada celeste, reunímo-nos em torno do crepitar acolhedor da fogueira onde, revivendo os momentos mais intensos da viagem, partilhávamos um excelente chá preto e cigarros com aqueles simpáticos homens que, por uma noite, foram nossos anfitriões.

Percurso do dia

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