sábado, abril 29, 2006

Dia 16: A espera em Foum Zguid

Quando acordámos, a nossa primeira preocupação foi saber o estado do joelho do Bruno. Todos sabíamos que o programa do dia dependia exclusivamente da sua recuperação.
Infelizmente, não estava melhor. O joelho inchou bastante durante a noite e o Bruno tinha uma mobilidade muito limitada na articulação.
Restava levantar acampamento e seguir viagem para Foum-Zguid. Lá, o Bruno trataria de contactar o ACP e solicitar a assistência em viagem para resolver o problema. Não estava em condições de conduzir, portanto teria de ser repatriado, bem como a moto.
Eu cá tinha outras ideias. O Camelbak com todos os meus documentos não tinha reaparecido e estava, obviamente, determinado em encontrá-lo. Tinha a certeza que o tinha comigo quando chegámos ali. Mas, nestas situações, rapidamente descobrimos que até as mais sólidas certezas se esfumam.
Iria voltar atrás na pista até o encontrar, nem que tivesse de regressar ao local onde tínhamos acampado na noite anterior. E tinha que ser já. Antes que passasse mais gente pelas pistas.

Quando já nos preparávamos para arrancar...
- "De quem é esta mochila?" - pergunta o Bruno.
- "HAHHHHH!!!" - exclamei, como se me tivessem tirado uma tonelada de cima.
Aquando do transporte do equipamento para o local, alguém agarrou no Camelbak e colocou-o inadvertidamente sob os pertences do Bruno. Salvo pelo sino...

Eram cerca das 9h30 da manhã e a temperatura já estava escaldante. Antes de arrancar encharquei o vestuário na água do rio. Com a circulação de ar, durante o movimento, mantemos uma agradável sensação de frescura.
Partimos rumo a norte, em direcção à estrada entre Tata e Foum-Zguid, por uma pista estreita e com muita pedra irregular. Cerca de 25Kms depois alcançávamos o asfalto e acabava a tortura do Bruno. Daqui para a frente toleraria melhor a condução.

Por volta das 11h00 chegámos em Foum-Zguid. Já cá tinha estado o ano passado e conhecia razoavelmente a localidade, o oásis e o antigo quartel militar da Legião Estrangeira. Foum-Zguid nasceu da grande importância estratégica da localização geográfica que ocupa num desfiladeiro que atravessa o imponente Jbel Bani protegendo, num fértil vale onde confluem os oueds Lamhamid, Hmidi e El Faija, os avanços de salteadores vindos do deserto.

Reunimos à volta dumas mesas na esplanada do Café La Liberté, na praça principal, e o Bruno de imediato inicia o previsivelmente moroso processo de repatriamento. Alternando entre os sumos de laranja e as colas, preenchemos o que restava da manhã. Os contactos telefónicos do ACP eram constantes e, num deles, informaram o Bruno que estavam com dificuldades pois a empresa de reboques marroquina exigia um pagamento de 600€! Ora, o problema era deles. Essa, é a sua responsabilidade.

Chegou a hora de almoço. Hoje não dependíamos dos enlatados! Para mim, mandei vir brochettes du viande avec frites.
Acabámos de almoçar e ainda não havia dados concretos sobre a chegada da assistência.
Também havia alguma dúvida sobre o repatriamento do Bruno uma vez que o seu pai, o Frazão Duarte, andava também por Marrocos com uns amigos e talvez conseguisse boleia para Portugal.

Finalmente chegam as notícias que todos aguardávamos. O táxi que levaria o Bruno até à fronteira espanhola já estava a caminho, bem como o auto-reboque que levaria a moto a Casablanca, de onde seria repatriada. Agora era só uma questão de tempo até chegarem.

Aproveitámos para dividir entre todos a gasolina que a XR ainda tinha no seu enorme depósito. Depois, e já que estávamos numa localidade, aproveitámos para atestar as reservas de autonomia. Assim evitaríamos passar por Tata e seguiríamos o mais possível junto à fronteira.
Comprámos o pão, água e algumas peças de fruta. Depois, à vez, fomos à estação de serviço à entrada da localidade para atestar os depósitos, os jerricans e efectuar alguma manutenção básica, como lubrificar a corrente e limpar o filtro de ar.

Tentava apenas limpar bem a corrente. Na falta de mangueira de água na estação de serviço, recorri à mangueira de ar comprimido, com o qual tentava remover o máximo de poeira e detritos antes de colocar o lubrificante. Como tenho o descanso central, é muito mais fácil colocar a moto a trabalhar e engatar a primeira velocidade.
Enquanto executava a operação, distraidamente, a mangueira tocou no pneu e ficou presa num dos tacos, começando a enrolar descontroladamente em torno do eixo da roda. Antes que tivesse tempo de me erguer e desligar o motor, já a mangueira tinha esticado e arrancado violentamente os frágeis apoios que fixavam os tubos de ar, estes metálicos, à parede! Opppsss...

Consegui desenrolar aquele imbróglio da roda e ainda disfarçar os estragos nas fixações antes que alguém desse por isso. Terminei a limpeza, lubrifiquei a corrente. Soprei o filtro de ar e voltei ao nosso quartel-general na esplanada da praça principal.

Por volta das 16h30, chega uma carrinha Peugeot 505 Break à praça. Tinha todo o aspecto de ser o táxi que aguardávamos. O condutor parou o veículo e dirigiu-se a um dos cafés da praça. Pouco depois aproxima-se de nós e pergunta que é o cliente. O Bruno fintava-o já com olhar desconfiado.
Ao telemóvel, dizia que não entrava naquele táxi. Não sairia dali para lado nenhum com o marroquino! Fartámo-nos de rir com a situação!
Perto das 18h00, já nós o tínhamos convencido a acompanhar o taxista, chegou o auto-reboque. Carregámos a moto e tratámos da burocracia, sempre sob o olhar apreensivo e desconfiado do Bruno. Fosse como fosse, ele não queria perder a moto de vista.

Às 18h30 estavam todos prontos para partir. O Bruno, finalmente, despede-se de nós e entra no táxi. O taxista, inquieto com a espera prolongada, arranca imediatamente mas, os dois tripulantes do auto-reboque, ainda tencionavam petiscar qualquer coisa antes da longa viagem para Casablanca.
Poucos minutos depois, o táxi surge de novo na praça! O Bruno, ao se aperceber que o auto-reboque não os seguia, forçou o taxista a regressar à praça! Simplesmente hilariante!

Pouco depois, os tripulantes do auto-reboque estavam prontos a partir. E lá se foi o Bruno e a sua companheira!
Enquanto decidíamos o nosso programa, o Quim, que já conhecia perfeitamente a localidade, foi ao Auberge Iriki e encomendou-nos o jantar. A especialidade é cuscus e, como demoraria algum tempo a preparar, aguardámos na esplanada até ao pôr-do-sol.
A noite caía veloz e já não faríamos muitos quilómetros nesse dia. Decidimos que após o repasto regressaríamos ao local de pernoita anterior, junto ao Oued El Mellah, e lá acamparíamos novamente.

À hora combinada comparecemos no Auberge Iriki, um albergue modesto mas muito asseado e hospitaleiro - honestamente é a melhor pensão em Foum-Zguid, se não a única - numa travessa junto à saída sul da localidade.
Colocámos as motos na garagem, um pátio interior coberto onde já repousavam algumas motos de cross, e subimos à sala de refeições.
Respeitando a tradição descalçámos as botas, que ficaram junto à entrada. Alguns turistas e famílias rodeavam 3 ou 4 mesas. Recordo-me que senti algum embaraço pelo odor emanado pelas nossas peúgas. Mas, enfim, nada podíamos fazer!

Já sentados em redor da pequena e baixa mesa redonda, sobre largos e confortáveis bancos almofadados, começámos o repasto com a apetitosa e alimentícia harira.
A harira é a sopa tradicional marroquina. É entrada obrigatória ao jantar, durante o Ramadão, para quebrar o jejum do dia. Em algumas cidades é também servida a parentes e amigos em ocasiões especiais, como na manhã seguinte após o casamento.
Não obstante, pode ser preparada e consumida em qualquer altura, embora muitas famílias prefiram manter a tradição e servi-la apenas nessas ocasiões.
Nós preferimos claramente a abordagem mais liberal, pois só assim usufruíamos desta iguaria deliciosa!
Generosamente, fomos convidados a repetir a dose. Entretanto, encomendei uma brochette para acompanhar o cuscus. Confesso que, após a incessante dieta de atum, estava mesmo com saudades de fincar os dentes na carne... de carneiro!
Para rematar, umas rodelas de laranja com canela e um café marroquino.
Agradecemos a hospitalidade e deixámos Foum-Zguid. Tínhamos 50Kms de asfalto para cobrir até à entrada em pista. Depois, mais 25Kms de pedra e pó até casa.

Seria talvez umas 0h00 quando chegámos à nossa praia fluvial. Sem demoras, montámos o acampamento e recolhemos para descansar.
Apesar de tudo o dia tinha sido bastante agradável e, tendo em conta a possível complexidade da situação, tudo acabou por correr pelo melhor. Também aqui uma palavra de apreço pelo esmerado trabalho do ACP.
Não conseguia deixar de sorrir cada vez que pensava no Bruno. Por onde andaria, a esta hora, à mercê do seu novo companheiro marroquino? Só ele sabe... :)

Percurso do dia

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