quinta-feira, abril 20, 2006

Dia 7: De Ersaf ao Plateau du Rekkam

Arrumámos o equipamento e deixámos o acampamento por volta das 8:30. Prosseguimos a rota para Sudeste, por pistas planas e rolantes até ao momento em que nos deparámos junto dum entroncamento, à beira duma depressão. Por um lado, caminhos de montanha que enrolavam as encostas a perder de vista. Por outro, uma larga e deteorada trialeira que descia através do amplo vale do oued Bezzouz, em direcção à localidade de Al Kerma.
A nossa rota, marcada grosseiramente sobre antigas cartas do IGN, era pela trialeira que nos orientava.
Descemos o caminho, que vagamente me recordava uma majestosa calçada romana, e atravessámos a estrada, agora asfaltada que surgia, perpendicularmente, no fundo do vale.
Tentámos várias alternativas para prosseguir naquele azimute, mas todas elas terminavam junto a casas ou desapareciam sob campos agora cultivados. Obviamente, a estrada asfaltada encarregou-se de eliminar as pistas...
Regressámos, pela trialeira acima, até ao entroncamento e seguímos a alternativa restante. Teríamos de avançar, ainda mais, à descoberta pois estávamos agora também fora da rota.
Apontámos a uma barragem que se revelava no horizonte, junto do jbel Lemqam, e através de estreitas pistas pela serra, algumas recém-criadas, alcançámos a represa sem dificuldades de maior.

O tom azul turqueza das límpidas àguas da barragem contrastava com o seco beje avermelhado do cenário envolvente. Um pedaço de céu caiu na terra, diria. Pelas margens, um rebanho de cabras banqueteava-se com a escassa vegetação rasteira. Aproveitámos a frescura do local para almoçar e eu empunhei uma sandes de atum.
Por alguns instantes, observei uma borboleta que sobrevoava as margens calmas da barragem. Lutava freneticamente contra o vento forte que contrariava as suas intenções. A cada rajada, a frágil borboleta era arrastada para trás alguns metros. Mas, munida duma vontade incompreensível, não desistia e continuava obcecada com a sua rota.
Num acto aparentemente insano, a borboleta, que até então se tinha mantido sobre a segurança do solo firme, lançou-se na travessia dum braço de àgua. À sua frente um oceano com cerca de setenta metros, uma verdadeira epopeia à sua escala pois, com o vento forte que a contrariava, facilmente os setenta metros se transformariam nuns tumultuosos duzentos. Observei, com apreensão, o desfecho da sua aventura.
Surpreendentemente, após inúmeras e forçadas acrobacias aéreas, o pequeno insecto concluiu com sucesso o seu empreendimento.
Aquela borboleta surpreendeu-me da mesma forma que os seres humanos por vezes nos surpreendem. Na natureza, nada acontece por acaso. Tudo tem um propósito, por mais incompreensíveis que determinados acontecimentos nos possam parecer.
A razão que leva uma frágil borboleta a lutar contra a força do impiedoso vento, sobre as àguas para si mortíferas da barragem, talvez tenha pouco a ver com o ímpeto que nos levou a enfrentar oceanos há mais de meio milénio atrás. Alguém diria ainda que a borboleta nem se apercebe sequer da façanha! Talvez, pois a razão tem razões que ela própria desconhece e nós não conhecemos certamente as motivações duma borboleta. Possivelmente, nem estaremos geneticamente aptos para as compreender!
Seja qual for a razão, fico feliz por reconhecer que, de alguma forma, seres humanos e animais ainda são unos. Que ainda partilhamos semelhanças com uma borboleta.
Há quem, felizmente, ainda preserve a genuína alma destemida de enfrentar o perigo e o desconhecido para chegar um pouco mais além. Contra os preconceitos e contra a razão. Quem não a possui, não a compreende. Quem não a possui, rotula-a de inconsciência. Quem não tem a coragem de aos perigos se expor, considera-os riscos desnecessários. Mas o que é certo é que o risco de uns, geralmente, é o benefício de todos.

Deixámos a barragem e retomámos a rota para Sul. À nossa frente erguiam-se as encostas escarpadas que delimitam o planalto.
Após alguns quilómetros a subir pelas pistas sinuosas da encosta, chegámos ao topo através dum largo desfiladeiro. Progressivamente, a pista foi nivelando e alargando e o horizonte, repentinamente, expandiu-se... até onde a vista alcança. Tínhamos chegado: já estávamos perante o imenso Plateau du Rekkam.
Plano e alto... estávamos a cerca de 1300 metros de altitude. Plano, surpreendentemente plano. A pista quase rectilínia estendiam-se ao infinito e rolávamos depressa, muito depressa. Punho trancado, quase a 130 no GPS... com este peso, não dá mais. Talvez desse, se a roda traseira conseguisse manter tracção.
Os traços divergiam em todos os sentidos e a pista, que cada um tomava, era definida pela imaginação.
Na ampla planura do Rekkam, só as nuvens de pó que emergiam do solo revelavam a localização das motos.
Subitamente, várias pistas convergiam numa pequena elevação e lá nos reunimos. No alto do observatório, um pequeno posto militar. Parámos para apreciar a grandeza do local.
Após trocármos algumas palavras com os militares, certamente habituados a observar pelos omnipresentes binóculos as loucuras dos étrangiers, lá prosseguimos a estafeta.
Muitas dezenas de quilómetros depois, surgiam as primeiras elevações no horizonte... e apareciam algumas armadilhas encobertas pela ilusão alimentada de planura.
Sem anúncios, grandes rasgos no solo surgem no caminho. Fios de àgua que ao longo dos tempos formaram extensos canais, erodindo o planalto até às suas entranhas pedregosas.
Não é raro deparármo-nos com autênticos precipícios de três ou quatro metros de altura. Rasgar velozmente a imensidão plana do Rekkam pode criar ilusões dispendiosas. Toda a atenção é pouca.

Ao fim da tarde avançávamos já através da pequena localidade de Matarka. Aproximava-se a hora de procurar local para acampar e tentámos seguir uma pista junto a um pequeno oued. Depois, mais alguns metros pelo oued...
Mas a pista não tinha saída, terminava junto de algumas casas isoladas e o oued era intransitável.
Regressámos à pista principal no momento em que passava um verdadeiro nómada numa mobilette. O Quim fez-lhe sinal que parásse e trocaram alguns gestos.
Prosseguimos pela pista e volvidos alguns quilómetros detivémo-nos, por entre as elevações de Armachene Gara, num enorme pátio arenoso. O local era magnífico para pernoitar!
Alguns minutos depois passa, pela pista, o nómada da mobilette. Para assegurar a conveniência do acampamento, o Quim lembrou-se de pedir ao homem que parasse novamente para lhe perguntar se ficaríamos bem ali... se seria seguro.
Ao que constou, parece que sim... e o nómada partiria, se ao menos a mobilette pegásse!

Foram momentos de frustação para o jovem nómada. De fisionomia alta e esguia, ostentava feições genuinamente beduínas. Não teria certamente mais de 30 anos de idade. Sob o impotente olhar ignorante dos cinco étrangiers, começou por verificar a vela. Faz faísca... mas troca-se na mesma. O cachimbo não existia... com a ponta descarnada do fio em torno do pivot da vela, verificou se dava choques enquanto accionava os pedais... dá choque, como pudemos comprovar!
Depois retirou, dos pequenos alforges da mobilette onde parecia caber quase tudo, duas garrafas de mistura que trocou com a que estava no depósito... ainda assim não pega, não era da mistura. Pedalava furiosamente, corria com a mobilette dum lado para o outro pela pista fora... e nada.
Não compreendíamos porque é que a maldita acelera não queria pegar! Tinha mistura no carburador e tinha ignição... o que mais é preciso para um motor tão arcáico e singelo funcionar? Talvez a admissão de ar? Nós não sabíamos... e o pobre homem, que tentou de tudo o que pode, também não.
O Quim observava consternado as tentativas infrutíferas do infeliz, talvez com uma certa dose de culpa a atormentar-lhe na consciência. Afinal, o tipo só ali tinha parado por sua solicitação!... e a noite já havia caído.
Entretanto passa um furgão Mercedes - afamado transporte colectivo pelas pistas africanas - que acabou com as nossas intenções de ali pernoitar.

Como se costuma dizer: o mal de uns é a fortuna de outros, e nós sentíamos óbviamente a necessidade de reparar a situação.
Num diálogo surdo perguntámos ao nómada onde tinha a sua casa. Sugerimos que deixasse a mobilette escondida por ali e oferecemo-nos para o levar à pendura até lá. Com sorte até poderíamos montar acampamento por perto. O homem anuiu efusivamente e lançou de imediato a mobilette para a berma da pista!
- "Não seria aconselhável esconder aquilo um pouco melhor?"
- "Ele é que sabe..."

Deixámos o local, com o nómada à pendura do Alex. Pela escuridão da noite, guiou-nos através da planície. Andávamos fora de pista surgindo, apenas esporádicamente, algumas marcas das sucessivas passagens da mobilette. Impressionava a capacidade de orientação no bréu do, agora felizardo :), pendura da AT.
Após quase uma dezena de quilómetros, parámos - "É aqui".

Na escuridão total, não conseguimos ver a ponta duma tenda! :) Apenas o ladrar furioso de um cão revelava a presença humana.
Entretanto, outro nómada surgiu na penúmbra e trocaram palavras animadas. O nómada agradeceu entusiasticamente a nossa boleia e aproveitámos a deixa para gestualmente solicitar a nossa permanência ali durante a noite.
Oficialmente autorizados, iniciámos a instalação do arraial de imediato. Visivelmente maravilhados, os nómadas observaram atentamente a montagem das tendas, enquanto ajudavam a espetar as estacas e comentavam entre si a qualidade e resistência dos materiais.
O cão não pretendia parar de ladrar apesar de começar a apresentar sintomas de afonia! Finalmente, após a ajuda delicada dos zelosos mestres, lá se engasgou e sossegou.
Jantámos; eu acabei por aquecer uma lata de grãos que acompanhei com o incontornável atum; e fomos merecidamente descançar o corpo dos mais de 330Km que o dia tinha rendido.

Percurso do dia

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