quinta-feira, abril 27, 2006

Dia 14: De Tagounite ao Oued En N'am

A azáfama começou cedo - acordei ao som do burburinho matinal. Abri a tenda e espreitei lá fora. Já estavam todos a tratar do pequeno-almoço sob o olhar atento e curioso dos nossos anfitriões marroquinos. Preguiçosamente aprontei-me e saí.

Enquanto tomava o pequeno-almoço, empunhando a gamela bem atestada de Cerelac, ouvia o Quim falar sabiamente acerca da necessidade de guardar e inspeccionar de manhã as vestes e botas antes de as colocar pois, sendo locais particularmente quentes e acolhedores, poderiam bem ser seleccionados por algum escorpião mais incauto como local de pernoita.
A conversa despertou-me a atenção para as dezenas de rastos marcados na areia. Não havia dúvidas que eram rastos de insectos. Já tinha visto rastos semelhantes anteriormente... provavelmente seriam escaravelhos, talvez mesmo escorpiões.

Findo o repasto começámos a desmontar as tendas e, assim que o Alex ergue a sua do solo, um escorpião rastejou apressadamente abrigando-se junto debaixo duma pedra.
Pequeno e alaranjado, ainda era júnior. Mesmo assim teria, talvez, poderio suficiente para causar sérios problemas a uma potencial vítima... felizmente, não chegou a nenhum de nós.
Assim que os militares se aperceberam do que observávamos, fizeram o que tinham a fazer. Para sua própria segurança.
Após agradecermos a hospitalidade dos nossos anfitriões e arrancámos velozmente para Este, rumo a Tagounite, através duma pista rápida com algumas secções de areia que se estendia ao longo da ampla bacia desértica. Pouco depois, diante de nós, a geografia tornava-se menos monótona. Alguns acidentes permitiam que ascendêssemos através de passos sinuosos, oferecendo-nos perspectivas maravilhosas sobre a imensa vastidão estéril onde nos encontrávamos mergulhados. A pista semi-arenosa deu lugar a outra, de terra batida ladeada de xisto, bastante bem conservada e a coluna progredia num ritmo confortável.

Alguns instantes depois, há medida que nos aproximávamos do oued Draa, surgiam as primeiras habitações junto aos palmeirais. Estávamos já nos arredores de Tagounite e as pistas começavam a divergir em quase todas as direcções.
Após alguma indecisão sobre a pista a tomar lá disparámos todos em direcção ao aglomerado residencial. Ao atravessar a pequena localidade, Oulad Youssouf já nas margens do oued, convergimos junto a uma ponte. Só o Jacinto não aparecia. Esperámos um pouco sobre a ponte mas, sem sinais do Jacinto, o Ferreira e o Tiago regressaram à localidade para ver se o avistavam.
Não era preocupante. Estávamos a muito poucos quilómetros de Tagounite e, com o à vontade que o Jacinto demonstrava na comunicação com os locais, facilmente se orientaria até ao nosso destino. Progredimos.

Chegámos a Tagounite com uma fome infernal. A primeira coisa a fazer, como sempre, era escolher uma esplanada para esticar as pernas e beber uma cola fresquinha... na medida do possível! A primeira esplanada que avistámos já estava reservada... o Jacinto já tinha tomado posse administrativa do local!

O restante pessoal foi chegando e começámos a pensar no repasto e logistica para os próximos dias. Encomendámos umas tagines no Restaurant du Sud e dispersámos pela localidade, cada um em busca do que precisava.

Fiz as minhas compras e regressei ao restaurante para petiscar. O Quim e o Ferreira tinham-se enfiado numa oficina de motorizadas. O Ferreira observava, divertido, enquanto um marroquino vulcanizava a câmara de ar. Ao que constou, tinha furado enquanto procurava o Jacinto! O Quim explicava a outro empregado que precisava duns pingos de solda nos apoios dos depósitos traseiros, que já tinham estalado quase todos com a fadiga provocada pelo peso e vibração. Engenhosamente, lá soldaram os apoios e arranjaram uma solução mais duradoura apoiando os depósitos um no outro através dum veio transversal. O Quim estava satisfeito, embora um pouco reticente, com o resultado alcançado. Enfim, era a solução possível.

O Alex decidiu partir após o almoço. Tagounite usufrui de um bom acesso asfaltado para Norte, via Zagora, e era uma boa oportunidade de ele arrancar rumo a Portugal sem ter de dar muitas voltas. Despediu-se e partiu, deixando-nos ainda a descontrair na esplanada do Cafe du Sud.

Desconheço outra forma de conhecer pessoas que não seja partilhando incessantemente um pedaço de vida com elas. É muito diferente de reconhecer alguém no emprego, no bairro ou na escola com quem até se possam partilhar algumas horas de conversa por dia.
Conviver com esta intensidade, num meio que nos pode ser estranho ou submetidos à adversidade, por vezes eminente, expõe-nos flagrantemente ao exame de quem connosco priva. Isso revela detalhes, facetas e pormenores de carácter que marcam determinantemente a diferença entre mais um colega ou vizinho e um potencial amigo e companheiro para as aventuras de uma vida.
O Alex primou ao longo das semanas que partilhámos ininterruptamente pela boa disposição, pela serenidade e constância emocional e pela acutilante e mordaz perspicácia, sempre com a necessária dose de inteligência e humor que mantêm as conversas e os serões bastante animados. Com a sua partida, ficámos todos menos ricos.

Pouco depois estávamos prontos a continuar. Com gasolina e mantimentos para 3 ou 4 dias de pista, rumámos a Noroeste em busca duma passagem através da Hassan Ou Brahim, uma escarpada muralha natural que nos bloqueia a progressão para Sudoeste. Durante alguns quilómetros circulámos hors piste (fora de pista), batendo a planície a norte de Tagounite em busca de trilhos. Pouco depois, demos com uma pista bastante marcada de terra batida e pedra.
Eu fechava a coluna que seguia relativamente dispersa e foi com alguma surpresa que, quando nos reunimos numa biforcação, o Tiago já não estava entre nós.
Esperamos um bocado enquanto o Quim regressou, pela pista que tínhamos acabado de percorrer, em busca de sinais do Tiago. Passou, talvez, meia hora até surgirem os dois vultos no horizonte. O Tiago tinha ficado numa curva onde deveríamos passar, mas nós devemos ter seguido outra pista paralela e ele não nos viu. Já quando regressavam ao nosso encontro, um dos seus dois jerricans caiu e ficou irrecuperável - tinha agora menos 5L de autonomia.

O Sol descia sobre o horinzonte à medida que progredíamos paulatinamente em direcção aos amplos espaços do sul marroquino. O solo poeirento e pedregoso, coroado por uma multidão progressivamente crescente de pequenas acácias retorcidas, preenchia de um tom caramelizado a amena atmosfera envolvente. Na distância, diante de mim, erguia-se a coluna de pó, deixada pela passagem das motos, pairando tranquila, difusa e cintilante sob o suave toque dourado de uma luz celestial. A sós com os meus pensamentos, mergulhado no silêncio absurdo que só se obtem num fim de outro mundo ou num estado de semi-consciência routinada pelo zoar monótono das 3500rpm, distante e alheio a todo o resto duma vida, a todo o resto deste mundo, entranhei aquele momento como tudo o que existia. E nada mais era preciso.
Foram escassos minutos... mas podiam bem ser longos anos. Uma emoção fugaz e inexplicável brota do ser nestes momentos. Um sentimento de união, de todo, de completude e complementaridade, tão avassalador quanto efémere. Não o sei descrever mas, felizmente, consigo-o sentir.
Não tínhamos ainda avançado muitos quilómetros quando encontrei o Jacinto parado na pista.
-"Furei à frente..." - disse, consternado.
Imediatamente iniciámos a tarefa da reparação como se esta já tivesse sido codificada nos genes. Aos poucos os mais avançados foram reaparecendo até que já só faltava o Quim. Alguns minutos depois, a coluna de poeira que se erguia subtilmente no horizonte delatava a sua aproximação veloz ao grupo.
Ainda não tinha parado a moto e já exibia um sorriso rasgado! Não pelo sucedido, mas pela satisfação pessoal de ter equipado mousses nas suas rodas!
Durante as duas primeiras semanas de viagem, através das trialeiras rochosas do Rif e pistas pedregosas do Rekkam, ninguém furou. O Quim já questionava o investimento avultado que tinha feito nas mousses. Mas os últimos dois dias, com o número anormal de furos registados, tinham-lhe provado cabalmente que tinha valido a pena tê-las colocado. Estava, na sua maneira muito própria, satisfeito com a sua opção! Eu, particularmente, não o podia censurar...

Demos por concluída a operação já convencidos que a próxima tarefa era encontrar um local para pernoitar. Arrancámos de olhos fixos na paisagem circundante em busca de qualquer característica geográfica ou biológica que nos pudesse servir de abrigo; dos rigores da noite mas, fundamentalmente, da possibilidade remota de passarem transeuntes mal intencionados naquela pista.
Quase de imediato surgiu-nos um trilho mal marcado que divergia em direcção a um pequeno aglomerado de rochedos. Seguimos nessa direcção e, algumas centenas de metros depois, encontrámos o local onde teria acampado recentemente alguma família de nómadas.
Instalámos o nosso bivouac e jantámos. Mais uma vez, fiquei-me pelo atum com tomate, empurrado por um naco de pão e rematado com duas laranjas, algumas colheres de compota de morango e o aroma familiar dum café.

A última memória que guardo desse dia é uma visão sublime do imenso mar de estrelas que lenta, quase imperceptivelmente, desfilava no seu eterno rodopiar sobre as nossas cabeças, enquanto trocávamos histórias pela noite dentro.

Percurso do dia

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