domingo, abril 23, 2006

Dia 10: Da Hamada du Guir a Merzouga

"Raios...mas que é isto?" - acordei de madrugada mumificado e coberto de areia. Estava um vendaval enorme e as varetas da tenda vergavam até ao solo. Subitamente, as estacas cederam e a tenda colapsou sobre mim.
Lá fora, já brilhava a luz de um frontal. Com alguma dificuldade lá consegui sair daquele emaranhado e encontrei o Tiago que já andava em manobras com a moto para criar uma barreira artificial contra ao vento.
Reuni as estacas e algumas pedras e tratei de alicerçar fortemente a tenda, tarefa hercúlea dadas as condições que se faziam sentir... o Tiago é que estava bastante divertido com a situação.
Finalmente, regressei à turbulência do interior. Era 1:30 da manhã.

Acordámos com um dia esplendoroso. O céu estava limpo e a temperatura amena, felizmente, sem vento!
Levantámos o arraial, deixámos o oued Taggourt e partímos em direcção a Sul. Percorremos uma pista rápida sobre o planalto de Bine El Korbine, orientando-nos progressivamente para Este-sudeste até Bou Zakrine.

Detivémo-nos por alguns minutos junto de uma enorme cascata formada pelo oued Bou Zakrine. O imponente panorama sobre o vale do oued Talrhemt extendia-se à nossa frente. Junto à enorme reentrância provocada pela queda de àgua, nómadas mantinham uma banca de venda de fósseis esculpidos.

O sul de Marrocos apresenta uma grande variedade de fósseis marinhos do período cretácio. Ao longo de vastas bacias, sendo a mais famosa a bacia de Beni Mellal, podemos literalmente recolher fósseis do chão!
Os locais reunem a pedra e esculpem os fósseis, que posteriormente vendem aos turistas ou exportam do país. Dos mais apreciados, descatam-se as trilobites e os dentes de tubarão.
Praticamente por todo o lado, encontramos mesas e mobiliário de WC construído com esta pedra incrustada de fósseis que se recolhe na região.
Quando cá estive no ano passado, nos arredores do Erg Chebbi, um berbére revelou-nos este segredo que se esconde sob a areia e o pó. Numa planície aparentemente desolada e rochosa, afastou a areia de uma àrea comum de chão. Por baixo, a rocha acastanhada e suja não despertava particular interesse... até que derramou sobre ela uma pequena porção de àgua. Sob o nosso olhar maravilhado, dezenas de diferentes formas animais emergiam da outrora pálida superfície rochosa.
Uma autêntica revelação e prova concreta de que, em tempos, o sul marroquino foi fundo marinho.

Caminhámos ao longo do penhasco em direcção ao amplo vale. Esta região assemelha-se a uma colossal escadaria que desce por degraus até ao Atlântico. Sobre o degrau de Bou Zakrine, temos atrás e à nossa esquerda o degrau da Hamada du Guir e à nossa frente o vale do Talrhemt que se estende para lá do que o horizonte nos permite contemplar.

Deixámos Bou Zakrine e descemos ao vale, progredindo agora para oeste, ao longo do oued Talrhemt, através duma pista estreita e arenosa.
Alguns quilómetros depois chegávamos aos limites das dunas que se extendem depois pelo Erg Moulay Aamar, a norte do Erg Chebbi, e finalmente já começava a haver areia com fartura! Um cordão dunar estendia-se agora diante de nós! - "Chegámos à areia!!!"
Alcançámos um oásis e decidimos almoçar. À sombra das palmeiras junto ao poço, decoradas de roupa a enxugar, partilhei uma lata de salsichas com o Tiago.
Entretanto aproximou-se uma burra com a cria. Deteve-se a uma distância segura e ficou a observar.
Obviamente que o jumento estava com sede, mas a nossa presença impedia o animal de se aproximar. Para lhe compensar o sofrimento puxámos àgua do poço, para dentro de um alguidar, para que pudésse beber abundantemente assim que partíssemos.

Deixámos o oásis atraves duma revoltada pista de areia. O Alex, que partira à frente, escolheu um desvio que nos levou directamente para o extenso e difícil areal onde alguns franceses rodeavam dois jipes completamente artilhados.
À passagem pelos franceses, bateu com a roda da frente num enorme calhau enterrado e, voando com arrojo sobre a frente a AT, aterrou praticamente aos pés dos connâitres!

Após algumas centenas de metros, encontrei uma superfície mais consistente e parei. Ao longe, o Alex ainda lutava para colocar a AT sobre rodas sem a imprestável ajuda dos connâitres e o Tiago aproximáva-se em dificuldades...
"Bem, acabámos de chegar às areias e já é o festival que se vê!" - pensei.
O Tiago parou e exclamou: "A moto não trabalha!" - Empurrámos a moto para fora do areal e tentámos descortinar porque é que motor não pegava.

Entretanto, chegou o Alex com a sua nova decoração nas carenagens da AT...
Após alguns minutos de despiste, substituimos a relé da bomba de gasolina e a AT lá roncou de novo.

Já no Erg Moulay Aamar, o Alex ficou sem gasolina. Tal como suspeitávamos, a bomba manual do marroquino de Boudnib, estranhamente, não media bem os litros... Eu ainda tinha os cinco da reserva e transferimos o suficiente para chegar a uma aldeia berbére, onde nos venderam mais alguns litros.

Enfretámos os últimos quilómetros até Merzouga a brincar pelas dunas. As rajadas de vento, que se tinham feito sentir ao longo da tarde, evoluiram para tempestade de areia e a visibilidade não chegava aos 20 metros!
Decidimos instalar-nos num dos albergues de Merzouga. Estava previsto que o segundo grupo, constituido pelo Luís Ferreira, pelo Bruno Valadas e pelo Luís Jacinto, chegásse no dia seguinte e o Erg Chebbi era o local ideal para esperar por eles! ;)

Após rondármos alguns albergues, embrulhados na tremenda tempestade de areia, acabámos por escolher o Alberge Erg Chebbi a norte de Merzouga. Por 190DRH instalaram-nos numa das torres onde tínhamos direito a uma cama, num quarto duplo com WC e àgua quente, com pequeno-almoço e jantar íncluido. Um verdadeiro luxo para quem andava à vários dias a viver como os bichos! :)

Depois de descarregámos as motos tomámos o primeiro banho condígno, desde que deixámos a Europa :), e aproveitámos o resto da tarde para descansar e preguiçar pelos sofás do albergue.

Ao jantar serviram-nos uma belíssima salada, seguida por uma saborosa tagine de carne picada com ovos. Depois apreciámos um chá de menta ao som da sempre agradável - quando bem executada - percursão de djambés, manipulados pelas mãos hábeis dos funcionários do albergue.

Por volta da meia-noite, recolhemos ao quarto para descansar. Amanhã gozaremos o primeiro dia de pausa e repouso desde que iniciámos o TT. Será dedicado à limpeza da roupa, manutenção das máquinas e descanso do corpo... exceptuando, claro está, a brincadeira pelas dunas! :)

Percurso do dia

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