sexta-feira, abril 28, 2006

Dia 15: Do Oued En N'am ao Oued El Mellah

O Homem, à semelhança de qualquer outro animal, é um ser de hábitos. O presente formata constantemente o futuro, tal como o passado já formatou o presente. Somos capazes de viver de qualquer forma, em qualquer lado, de qualquer coisa... e sobreviver. Assim tenhamos tempo de formatar os hábitos.
Felizmente, ao contrário de muitos outros animais, a nossa formatação é muito rápida. Tão rápida que em 15 dias até nós, habituados aos confortos-padrão do mundo ocidental, já estamos confortavelmente habituados a dormir no chão; a viver de enlatados; a dispensar o banho matinal; a montar e desmontar a casa em 15 minutos; a andar sempre de mãos sujas; a vestir a mesma roupa; a esfregar mal os dentes; a defecar de cócoras; a lavar o que podemos, onde podemos ou a passar 12 ou mais horas em cima da moto sem o mínimo resquício de cansaço.

Mais uma noite descansada. Mais uma casa arrumada.
Sem demoras, retomámos a pista no local onde a tínhamos abandonado. Prosseguimos tranquilamente sobre o solo pedregoso, desfrutando da frescura do ar da manhã e da amplitude de horizontes proporcionada pela larga planície. Alguns quilómetros depois chegámos à Air Sidi Abu er Rahmane, um oásis de onde brota uma nascente de águas cristalinas. Aproveitámos para saciar a sede e atestar algumas garrafas.
No local, além das inúmeras rãs residentes, encontravam-se alguns locais e também um jipe com turistas.

Após breves minutos de contemplação, por entre monólogos surdos das jovens vendedores de souvenirs, continuámos em direcção ao Erg Chegaga.
Enquanto contornávamos a enorme extensão de dunas, pela pista imediatamente a norte, parámos à sombra dumas acácias. Aproveitei a pausa para me tentar aproximar um pouco mais das dunas.
Percorri cerca de dois quilómetros fora de pista, em direcção às dunas, e parecia que nunca mais lá chegava. Consternado, regressei. Não queria que o grupo perdesse tempo por minha causa. Tive de me consolar com a miragem ainda distante daquelas belas silhuetas douradas.
Estávamos já muito perto do Lac Iriki e, escassos momentos depois, voávamos a 130Km/h sobre aquela vastidão surpreendentemente plana e poeirenta. Aqui não há uma pista para seguir. Há mil, um milhão... é só escolher a direcção! A velocidade, essa, tem limite: aquele que a capacidade do motor e da aderência dos pneus ao solo impuserem. Fantástico!
A meio do lago, as pequenas dunas de areia proporcionaram alguns minutos de brincadeira... quando não eram excessivamente moles!

Aproximava-se rapidamente o meio dia e, com ele, a hora de almoço. Recolhemos sob uma acácia frondosa e tratámos de comer. Mais uma vez, fiquei-me por uma lata de atum com tomate, acompanhada por um naco de pão e rematada com uma laranja.
Após a breve refeição, retomámos o caminho e abandonámos as margens do seco Lac Iriki. Seguíamos agora em direcção à fronteira, para Sul, aqui delimitada pelo Wad Draa.

O Oued Draa, o maior rio de Marrocos, estende-se ao longo de cerca de 1100Km e é originado pela confluência do rio Dadés e do rio Imini. Corre desde as montanhas do Alto Atlas para sul, até Tagounite, seguindo depois para oeste até desaguar no Atlântico, um pouco a norte de Tan-Tan.
Durante a maior parte do ano está seco após Tagounite, sendo indispensável na irrigação de culturas hortícolas e palmeirais ao longo do seu curso.

Um pouco antes do Draa, encontrámos uma antiga pista do Dakar. Inconfundível. Balizada. E o melhor de tudo, seguia na direcção do azimute que havíamos traçado. Sem mais demoras, foi por ali que continuámos.


Os quilómetros passaram rapidamente. Calcorreámos zonas rápidas de terra batida, algumas de chapa ondulada, partes de muita pedra e alguns troços de areia de baixa dificuldade.
Por volta das 15h30 chegámos às margens do Oued El Mellah. O calor fazia-se sentir, aparte de estarmos imundos, e o local era ideal para ir a banhos. Mais depressa feito do que dito... e já estávamos de molho.

As margens do rio, arenosas, estavam cobertas dum mineral esbranquiçado e granuloso. Parecia-me ser sal. Até haviam torrões! Decidi não colocar a teoria à prova.
De seguida foi a vez de lavar a roupa interior, acumulada nos últimos dias, aproveitando a vegetação circundante para a pendurar a secar.
E por ali ficamos umas boas duas horas a descontrair.

Por volta das 17h30 decidimos prosseguir. Seguimos em direcção a uma pista que atravessava o leito do oued, poucas dezenas de metros para sul , através duma ampla bacia de grandes pedras roliças.
O Bruno, lá na frente, entrou com demasiada confiança e esbarrou numa pedra maior. Desequilibrou-se e caiu para o lado. Apesar das protecções, embateu violentamente com o joelho noutra pedra e ficou-se a queixar.
- "Aleijaste-te?" - perguntámos apreensivos.
- "Epá... uma beca!" - respondeu consternado.
Com esta reposta percebemos imediatamente que a situação era mais séria do que poderia parecer. Normalmente, quando caímos, temos sempre tendência a erguer-nos rapidamente e, orgulhosamente, a disfarçar as dores. Para o Bruno responder "uma beca", a situação tinha de ser séria!

A noite aproximava-se. Estávamos a cerca de 25Kms do asfalto e a pouco mais de 75Kms de Foum-Zguid mas o Bruno, modestamente, já só pedia um quarto de Hotel e gelo!
Decidimos permanecer ali nessa noite para aguardar a evolução da lesão, avaliando na manhã seguinte se o Bruno reunia as condições físicas para continuar.
Entretanto, aproximou-se uma coluna de 3 jipes Toyota com matrícula francesa. Deram algumas voltas pela zona e estacionaram, atrás dumas dunas, a cerca de 300m do nosso local.

Começávamos a montar acampamento, junto ao leito do rio, quando dei pela falta do meu Camelbak. Não seria preocupante não fosse eu ter os documentos todos lá dentro! Perguntei se alguém o tinha visto, mas as respostas eram negativas. Comecei de imediato a percorrer toda a área por onde tinha passado. Lembrava-me de o ter às costas quando arrancámos e também de o ter tirado enquanto auxiliava o Bruno. Mas não o conseguia ver em lado nenhum! Raios... aquilo não é assim tão pequeno!

Já com o Quim envolvido na operação de busca, e depois de termos percorrido novamente os cerca de 500m de extensão por onde tínhamos passado, decidimos ir perguntar aos franceses se, por acaso, não o teriam visto ou recolhido.
- "No... nous ne l'avons pas vu." - responderam, após breves instantes de conferência.
Eram 3 casais de meia idade. Já tinham o acampamento montado com uma pequena cozinha, sala de jantar, uma tenda WC e - imagine-se - um chuveiro! Isto sim é luxo!

Regressámos ao nosso modesto acampamento e enquanto montava a tenda, matutava já uma forma de resolver o grave problema da documentação...

Já com a casa instalada, preparámos o jantar. Saciei-me com uma dose reforçada de papa Cerelac e terminei com um café.
Já sob a habitual imponência da cintilante abóbada celeste, recolhemos aos aposentos para mais uma tranquila e silenciosa noite no deserto.

Percurso do dia

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