sexta-feira, abril 21, 2006

Dia 8: Do Plateau du Rekkam a Bouanane

Foi de forma inesperada que me acordaram. Já fui acordado por uma grande variedade de dispositivos e animais... mas ao som do azurrar de um burro deve ter sido a primeira vez! Para melhorar ainda mais a experiência, o providencial jumento foi pontual!

Subi ao cume do monte adjacente para testemunhar o momento. Lá em baixo, no vale, o Tempo parou por instantes. Separadas por algumas dezenas de metros mas por centenas, talvez milhares, de anos de evolução e adaptação, fintavam-se duas gerações de nómadas, embora de propósitos bastante distintos.
Dum lado, uma modesta tenda de lã, suportada por varas de madeira e enormes calhaus, forrada com tapetes e prenchida com os escassos objectos pessoais que sustêm várias vidas. À sua volta, um rebalho de cabras simbolizava toda a riqueza reunida por aquela família. Na distância, sobre a encosta do outro monte, o burro rebusnava solitariamente.
Do outro, erguiam-se tendas sintéticas ultra-leves, com pólos e estacas de alumínio, recheadas do conforto fornecido pelos colchões de ar e sacos-cama de Micro-loft. À sua volta repousavam motos de alta cilindrada, veículos raros em Marrocos, equipadas com tecnologia da era espacial que não representam mais que luxos acessórios nas nossas vidas. Na distância, sobre este monte, eu observava solitariamente... e sorria.

Começámos a levantar o acampamento e o jovem nómada, que viera ao nosso encontro na noite anterior, aproximou-se de nós. Sentou-se e ficou, simplesmente, a observar.
O Ricardo, que mais uma vez tinha dispensado a cápsula de poliester, tinha visto o motard partir pelo alvorecer - Talvez tenha ido buscar a mobilette! - Acabou de vazar um garrafão de 5 litros de àgua para dentro do drink-pak e pousou-o junto do nómada.
Certamente seria utensílio mais útil para eles do que para nós!O jovem levantou-se e recolheu o garrafão.
Escassos minutos volvidos regressou. Trazia o garrafão cheio de àgua e pousou-o junto de nós.
Apesar de não ser essa a nossa intenção, abalou-me a tremenda generosidade do rapaz. Jamais me esquecerei deste momento.
Dissemos-lhe que não pretendíamos a àgua mas apenas oferecer-lhe o garrafão, gesto que agradeceu como se lhe tivéssemos deixado uma jóia. Aprendi mais uma grande verdade: a necessidade define a utilidade e o valor dos bens, facto que raramente ponderamos na consumista sociedade ocidental.

Agradecemos a hospitalidade e partimos rumo a Sul. Pela frente estendia-se o que nos restava do Plateau du Rekkam.
Após escassos quilómetros de pistas rápidas, rumámos a Este para convergir com a nossa rota. Tínhamos de atravessar uma cordilheira de montanhas e era essencial acertar com a única passagem da região, junto ao jbel El Ourak.

Por entre os montes de Saibet acompanhámos um oued até alcançarmos a rota marcada. A via priveligiada era a pista 5358, longa, arenosa e rectilínea, que nos levaria velozmente para Sudoeste em direcção à aldeia de Bel Ghiada. Depois, corrigimos o azimute para Sudeste para irmos ao encontro do jbel El Ourak. Através dum amplo vale arenoso, alcançamos o estreito desfiladeiro que nos permitia progredir para Sul... e deixar definitivamente o Rekkam.

A passagem do desfiladeiro proporcionou-me uma das mais belas paisagens que já pude contemplar. O passo angulado, que descia pelo desfiladeiro, tinha sido calçado para evitar a degradação e continuava depois junto à margem de um oued. Parámos junto ao oued e decidimos ali almoçar.
O vento soprava forte através do desfiladeiro, compensando o calor que o Sol já insistia em transmitir.
Na poeira do desfiladeiro surge, inesperadamente, um berbére. Montava um jumento cruzado que, a passo, percorria pacientemente a pista na nossa direcção.
À passagem pelo aglomerado de motos encostadas à berma da pista o ancião, enrolado numa velha manta de lã, cumprimentou-nos suavemente com a cabeça. Não sei quem era, de onde veio, nem para onde foi. Mas sei que tinha todo o resto da sua vida para o fazer. A passo, sem pressa.
Um dia, se chegar a ancião, espero envelhecer num mundo onde ainda se viva assim. Num mundo onde cada minuto serve para percorrer mais uns metros, onde cada dia importa e faz diferença. Onde cada ano ainda enriquece o ser. Não numa qualquer cidade ocidental onde a velhice, além de ridicularizada na sociedade e nos nossos lares, não passa da antecâmara do esquecimento, da solidão, da paralisia e da morte.

O almoço já o tinha pronto. Deliciei-me com os grãos e atum que tinham sobrado do jantar, à sombra de uma àrvore ancorada na beira do leito.
Após o repasto deixámos o desfiladeiro e contornámos o jbel El Ourak, dirigindo-nos para ocidente junto à sua vertente sul.
Alguns quilómetros depois, através duma pista pedregosa e degradada, alcançámos um pequeno oásis. Nas redondezas, algumas cabanas de alvenaria e um poço.
Algumas mulheres e crianças afastavam-se por um pequeno carreiro acidentado. Levavam àgua e roupa lavada. Certamente haveria ali alguma aldeia por perto.
A pista terminava ali, junto do poço, e após explorarmos um pouco o vale encontrámos traços até outra pista, esta sim, que nos levaria então através do vale de Dayet El Mahrouta, depois junto ao oued Bou Kheehha pela Batene Aj-Jedari - na vertente sudeste do jbel Talmeust.


Já tínhamos percorrido bem mais de 500Km e as nossas reservas de gasolina deveriam estar mesmo, mesmo a acabar!
Chegámos aos arredores de Bouanane praticamente a vapores. Aliás, o Alex ficaria a meia dúzia de quilómetros não fosse o excesso que o Quim transportava. Após uma pequena transfega, percorremos os carreiros que atravessavam as culturas que se extendem ao longo do palmeiral, cruzámos o ainda razoável caudal do oued Bouanane e completámos os últimos quilómetros até à localidade pelas suas férteis margens.

A localidade de Bouanane recebeu-nos quase à hora de jantar. Parámos junto a um café na praça central e refrescámo-nos com algumas bebidas e chá.
Aqui não há estação de serviço e, portanto, teríamos de abastecer comprando gasolina enbarrilada aos locais.
Decidimos jantar por ali e encomendámos uma tagine de borrego. Enquanto preparavam a refeição, partimos com um local em busca da gasolina.
Levou-nos até uma zona residencial na períferia onde, através do portão duma pequena garagem, duas mulheres se encarregaram de fornecer o precioso líquido. Dois garrafões de 5 litros para cada um e seria suficiente para nos levar até Boudnib.
Esgotámos as reservas do barril e ainda faltavam mais 10 litros para o Ricardo.
A miudagem do bairro imediatamente acorreu ao local, não para pedinchar, mas apenas para satisfazer a curiosidade natural pelas motos. A festa estava garantida! :)
Regressei com o Quim ao café, enquanto os outros foram comprar gasolina a outra casa. O Quim estava em pulgas para sondar uma pista para Sul e esperei por todos no café.

A noite tinha caído mas, como é normal em Marrocos, a azafama da localidade não tinha diminuido. Antes pelo contrário! Bouanane revelava-se uma localidade pacata, sem a pressão que normalmente os miúdos e os comerciantes fazem sobre os forasteiros. Durante as horas que permanecemos na vila, senti-me integrado!
Após termos jantado, comprámos pão e àgua e deixámos a vila em busca de local para acampar. Rumámos a Sul, em direcção à fronteira, na esperança de encontrar uma pista que nos afastasse dos olhares passageiros.
Progredimos cerca de 12Km e, após avaliarmos vários locais, acabámos por nos afastar da estrada por fora de pista, em direcção a Este, até junto de alguns arbustos.
Na escuridão da planície desértica, montámos as tendas e fomos descansar. Daqui em diante a nossa rota rumará para Sudoeste, através das longas pistas do grande sul de Marrocos!
"Venha a areia! Vamos a ela!" - Estamos prontos!

Percurso do dia

<< anterior seguinte >>

Sem comentários: