sexta-feira, julho 25, 2008

A Transiberiana: parte 3


9h00: Acordo em silêncio e imobilidade. Estamos parados. Salto da cama e, em simultâneo, o comboio reinicia a sua marcha. Já não consigo ver onde estamos mas, por cálculos grosseiros, talvez nos arredores de Mariinsk. Pouco depois, a passagem da ponte sobre o rio Kiya confirma.

Já me acostumei ao conforto e silêncio do meu compartimento "privado". O #10 é uma composição moderna e eficiente. Todas as carruagens, não só as Spalny (1ªclasse - 2 camas, em alguns comboios também com WC), mas também as Kupé(2ºclasse - 4 camas) e as Platskartny(3ºclasse - camarata) são bem isoladas, inclusivamente com recurso a vidros triplos, o que garante uma temperatura agradável no interior - mesmo nos rigores do Inverno - e um nível de ruído aceitável.

Ao longo da linha, centenas de operários observam a passagem da comboio. Parecem estar apenas a socializar. Se o fazem apenas enquanto passamos, então será interessante que não o façam com todas as composições pois, ao ritmo com que o trânsito ferroviário circula por estas bandas, bem podem gastar todo o dia a ver passar comboios!

Há um "mito" ou, pelo menos, uma ideia generalizada entre as pessoas que já ouviram falar da Transiberiana que importa clarificar. Primeiro, não são muitos os que já ouviram sequer falar desta (imensa) parte do mundo. Para a maioria, a Rússia continua envolva numa cortina de fumo (ou será ainda de ferro?) que não ousam penetrar nem, tão pouco, estão minimamente interessados ou motivados.
Para os poucos que efectivamente já leram ou ouviram falar sobre este itinerário, a grande maioria está convencida que se trata de um comboio que, há imagem do famoso (e extinto) Expresso do Oriente(que cumpria uma ligação regular entre Paris e Istambul), faz a ligação entre Moscovo e o Extremo-Oriente. São ainda mais raros os que sabem efectivamente onde o tal comboio termina a viagem...
Isto é uma concepção totalmente errada.
Na verdade o que existe é uma linha ferroviária, entre Moscovo e Vladivostok (cidade portuária russa no Pacífico), a que chamam de Transiberiana, e que, com os seus quase 9300km de extensão, é efectivamente o mais longo caminho-de-ferro do mundo. Esta linha tem, a certo ponto, duas variantes que divergem com direcção a Pequim, capital da China. A primeira, a Transmongoliana, ruma a Sul logo após o Lago Baikal (em Ulan-Ude). Atravessa as inesquecíveis estepes mongóis, passa pela capital Ulan-Bator e segue para Sueste, através do Deserto de Gobi, até à China. A segunda, a Transmanchuriana, diverge da Transiberiana mais a Este e atravessa a fronteira na província chinesa da Manchúria.
Todas estas linhas são servidas por centenas de comboios, em milhares de serviços distintos. Passageiros, matérias-primas, mercadorias importadas e exportadas, este é o cordão umbilical da federação e, muitas vezes, a única forma de locomoção das populações. Não é um serviço turístico como muitas pessoas pensam quando se deparam com os pacotes caríssimos nas agências da especialidade. Viajar na Transiberiana é como viajar em qualquer outro país, como Portugal. Podemos chegar a uma estação, escolher um destino, comprar uma passagem e embarcar! A grande diferença reside nas possibilidades: em nenhum outro país do mundo podemos passar, numa mesma viagem, mais de uma semana dentro de um vagão sempre em movimento. E percorrer 8 fusos horários... um terço da superfície terrestre. É este o fascínio deste itinerário. E a razão porque faz parte do imaginário e dos sonhos de qualquer viajante.

O comboio é como uma cápsula. Viajamos pelo Universo, no Espaço-Tempo. Entramos e acomodamo-nos. Despimos as roupas tradicionais; vestimos os pijamas, os fatos de treino, os calções desportivos, as ceroulas e os robes. Descalçamos os sapatos e as botas; andamos agora descalços ou usamos chinelos de couro, havaianas, socas de madeira e sandálias de borracha, com peúgas ou não. Deixamos os preconceitos e formalidades lá fora. “Fazemo-nos” em casa.
A bordo, o tempo é passado a conversar, a beber chá, a ler, a comer, a observar, a fotografar, a escrever, a reflectir, a planear, a rir, a gritar, a correr, a cantar, a descobrir, a sorrir, a brindar (há cerveja e vodka, muita vodka), a passear pelos corredores, a aguardar pacientemente nas filas do WC, e - a maior parte do tempo - a dormir.
Estranho este balançar rítmico que nos faz dormir. E não há sono que nos valha, há quem passe 16 horas pelas brasas.
Vários dias depois saímos a muitos milhares de quilómetros do inicio. Perdemos a noção de onde estamos, das horas que são, do tempo que passou... e concluímos que Einstein tem toda a razão: viajando neste Universo, deformámos o Tempo.
Fica-nos na memória um sonho de belas paisagens verdejantes; de infinitos espaços abertos, cobertos de "ouro" ondulante subjugado à suave brisa do vento; de fantasmas cinzentos da era soviética, perdidos por entre ténues colinas da Taiga; da superfície surreal dum solo líquido, de imensos campos pantanosos; dos riachos vestidos de algas. Aqui e ali, uma ou outra cabeça de gado.

10h30: Durante poucos quilómetros atravessámos uma região mais acidentada. As colinas são proeminentes e há vestígios de exploração mineira. Há escórias e carvão.
O terreno reassumiu o seu perfil plano e abriram-se infindáveis campos de cultivo.

11h40: Parámos em Achinsk(KM3917), após passagem pela ponte sobre o Chulin. A paisagem junto ao rio é avassaladora: uma margem está ao nível das águas enquanto a outra, a pouca distância, se ergue uma centena de metros formando o planalto onde se situa a localidade.

A geografia tornou-se mais agreste. Há mais montes e vales, estreitos e obscuros. Predomina a Taiga.

12h55: O comboio serpenteia agora por entre montes muito acentuados.

13h25: Estamos ao KM4028 e a subir lenta e acentuadamente por entre um vale densamente florestado.

Continuamos a subir e só há espaço para uma linha. O maquinista buzina incessantemente. Por vezes descrevemos largos "S" e viajamos para Oeste.

13h40: Terminámos a portela. Mudamos de linha e já aguarda uma composição de mercadorias em sentido inverso para entrar neste troço.

14h25: Chegámos a Krasnoyarsk. Na estação renovada, inaugurada em 2004, exibe-se uma locomotiva a vapor. Um verdadeiro monstro metálico. Saio da estação e vejo-me numa ampla praça com várias fontes ornamentais no centro. Fervilha de vida. Há dois casais de recém-casados e convidados por todo o lado. Tiram-se fotos a rigor, como a ocasião exige. Numa das extremidades da praça, uma enorme parede de um edifício exibe um mosaico com a imagem de Lenine, por entre heróis populares e ícones da revolução. Está bem conservado e é, sem dúvida, bonito. Dou a volta ao largo por entre as pessoas. Há gargalhadas, sorrisos, as crianças correm e puxam-se. Ninguém dá por mim. Como eu gosto.

Atravessamos o Ienissei. Este extenso rio divide tradicionalmente a Sibéria em duas metades desiguais. Nasce no norte da Mongólia e desagua no Oceano Árctico. Com um curso de mais de 5200Km, é o sexto maior rio do mundo. Para quem vai para Este, o rio marca por isso o fim da chamada Sibéria Ocidental. Estou agora na Sibéria Oriental!
A margem direita do rio é uma movimentada zona portuária. Mais afastados, edifícios cinzentos e deslapidados ornamentam as amplas avenidas. O trânsito é caótico. Que contraste com a imensidão natural e "desumanizada" da Sibéria selvagem.

Nos subúrbios, regressam as moradias de madeira em pequenas parcelas de terreno cultivado. As colinas estendem-se agora despidas, num verde intenso. Nos vales, por entre as casas, quase sempre corre uma linha de água. Ao lado, trilhos gémeos estreitos improvisam as ruas.

As florestas são agora tão densas que as tomaria por impenetráveis. Surgem clareiras onde se concentram algumas casas. Passa-me pela cabeça... "há quanto tempo nada muda por aqui?". Parece que estou muito longe de todo o resto do mundo. Sem esta linha, este lugar não existia.

"Que vista fantástica... deixa ver se consigo tirar esta fotografia" - repentinamente, vegetação serrada ou composições em sentido contrário encobrem a visão - "Claro que não! Estou na Rússia!!".
De alguma forma, uma grande parte dos russos cresceram sob o signo do sigilo. Um sigilo imposto por uma sociedade em que expressar ideias e emoções em público foi motivo de perseguição, exílio e morte.
Os tempos são outros, certamente. Contudo, não se muda uma sociedade num dia. Muito menos uma sociedade tão complexa como a russa, com os problemas e dificuldades que ainda hoje pairam sobre os seus membros.
Sempre ouvi, com desconfiança, as coisas que se pensam e dizem sobre as pessoas. E no ocidente sempre se falou deste povo, quase sempre pelos piores motivos e muitas vezes com desagradáveis conotações.
Não sei onde estão esses indivíduos rudes e taciturnos que tanto ameaça(ra)m o "estilo de vida ocidental". Ter-se-ão extinto com a Perestroika? Nunca saberei. Mas posso-vos garantir que não encontrei nenhum no meu caminho. Muito pelo contrário!
São efectivamente pessoas reservadas... mas que procuram confiança. Sentindo, abrem-se e revelam-se seres humanos calorosos e hospitaleiros, ao nível dos povos mais ternos, cultos e abertos com quem já tive oportunidade de conviver.
Não tenho a menor dúvida: sou bem-vindo aqui. E vou voltar.

17h00: KM4250. Continuamos a subir amplas colinas. Há campos cultivados e horizontes a perder de vista. Os céus arqueiam sob a incomensurável imponência do azul. Nunca tinha visto o céu abater-se de tal forma sobre o horizonte. Nunca tinha visto um azul assim. É lindo!

17h15: Chegámos a Zaozyornaya. Paramos apenas um minuto.

18h28: Há algum tempo que percorremos um amplo vale. As colinas mais próximas parecem a mais de 10km. Há poucas vegetação e vislumbra-se alguma indústria pesada e as tradicionais moradias um pouco por todo o lado. Para Este, para onde nos dirigimos, o céu está carregado e sombrio. Nuvens escuras e compactas auguram mau tempo.

Parámos na estação de Kansk-Yeniseysky(KM4343). Começa a chover.

19h15: Paramos em Ilanskaya(KM4376). O local desta vila foi escolhido pelo famoso navegador dinamarquês Vitus Bering, numa das suas viagens de exploração ao extremo-oriente siberiano, ao serviço do Império Russo.
Desço da minha carruagem e caminho pelo cais improvisado. A estação está a ser remodelada e este não passa ainda de um monte de terra e cascalho onde repousam os futuros postes e suas sapatas. Ao longo do cais, dezenas de vendedoras exibem os conteúdos fumegantes de tachos e panelas, tupperwares e travessas, cestas e sacos. Há frango assado e estufado. Há batatas cozidas com ervas aromáticas. Há sopa de verduras. Há pelmeni com fartura. Vejo também folhados, enchidos e salgados. Também há churros, doces, pão e fruta. Não falta bebida. Não falta nada.
Os passageiros rodeiam as vendedoras e começa a azafama da troca: rublos por calorias. Detenho-me da minha deambulação errónea pelo cais. Paro e observo a multidão frenética. Em poucos minutos, os tachos estavam vazios.
As minhas reservas alimentares são mantidas ao mínimo indispensável. Em viagem, como sempre bastante menos. Não por desgostar das iguarias locais, muito pelo contrário! Apenas caio sempre "vítima" do mesmo ciclo vicioso: quanto menos como, menos apetite sinto; e quanto menos apetite sinto, menos vontade tenho de comer; logo, menos como! Não é raro chegar à hora de jantar apenas numa sandes e uma ou duas peças de fruta. A maior parte do tempo estou tão empenhado no que ainda tenho que fazer, no que quero ainda ver, no que não posso perder, que simplesmente me esqueço de comer. E na verdade não sinto falta. Já aqui tenho uma bela provisão de calorias à cintura...
Pelo sim, pelo não, compro um pão e uma salsicha fumada. Subo a bordo e o comboio parte. Esqueci-me da fruta...

Nos arredores de quase todas as localidades há indústrias devolutas. Edifícios com paredes imponentes, de tijolos de barro, rodeados de estruturas metálicas retorcias e ferrugentas. Algumas ainda operam.
"Quantas décadas terá isto?" - pergunto-me. Imagino um país densamente industrializado há 50 anos atrás. Na mesma altura em que a Europa se tentava reerguer das cinzas. Imagino um país tecnologicamente avançado, no entanto, com condições de trabalho e de vida muitas vezes miseráveis. Até macabras, ao ponto dos considerados bacilos sociais serem escravizados pela infame Gulag.
Esta era uma super-potência planetária. Rivalizava com os EUA ao ponto de medirem constantemente forças entre si, sempre de forma indirecta. Um mal menor. Um conflito militar aberto entre ambas as potências nucleares poderia bem ter sido o nosso fim.
Durante quase 50 anos, competiram no domínio militar, científico, político e em todas as outras frentes. Estávamos em plena Guerra Fria, um conflito latente e que ninguém desejava.
Protagonizaram "incidentes" um pouco por todo o globo. Apoiaram regimes adversários na Coreia, no Vietname, mais tarde no Afeganistão e médio-oriente. As suas esferas de influência disseminaram-se por todo o planeta. E mais para lá. A Corrida ao Espaço elevou a ciência a um novo patamar: nasceu a era espacial. Os russos na vanguarda da conquista do Cosmos, até ao dia em que os seus rivais afirmam ter alunado dois astronautas...
A dissolução da URSS ditou o fim de uma era, e a super-potência mergulhou fundo. Foi o fim da Gerra Fria. E o princípio de um novo ciclo.
A Rússia tem uma História atribulada. E quase sempre trágica e brutal. Disso não há a menor dúvida. Mas é certo que ressurgirá.

Atravessamos novamente densa Taiga. Árvores jovens amparam outras mortas, que ficam simplesmente encostadas às vivas. Há também troncos enormes e putrefactos caídos no solo. Este, permanece um misto enigmático de água e húmus. Não se distingue uma consistência, uma estrutura, uma ilusão de solidez. Tanto quanto podemos antever, um próximo passo pode bem ser em falso.
Nestas florestas vivem os espíritos e a magia. Estas são as florestas dos Shamans.

A densidade florestal é tal que não é possível enxergar mais de meia centena de metros para o seu interior. Esporádicas clareiras revelam um solo primitivamente verdejante e intacto, como se nunca um pé humano o tivesse pisado. Há colónias imensas de íris siberianas, tingindo de violeta a paisagem circundante.

Cruzam-se composições a cada dois minutos. Hora de ponta... o ritmo é frenético.

O céu procura revelar-se por entre as nuvens pesadas e sombrias. Por vezes, o Sol fura a barreira e inunda partes da floresta com a sua luz. Já desce sobre o horizonte. A atmosfera resplandece num suave tom dourado de cortar a respiração.
Penso que daria uma boa foto. Mas a janela do meu compartimento está já demasiado suja por fora. Praguejo por não a ter limpo na última paragem.

Passamos em mais uma pequena e remota povoação. Junto do apeadeiro há um pequeno monte de carvão acastanhado. É utilizado pelas provonidzas no samovar das carruagens, onde é permanentemente disponibilizada água fervente.

A luz natural é ténue. O Sol está já baixo. Chega a última noite a bordo.

O por-do-sol ilumina os céus de Tayshet num rosa-salmão sobrenatural. As nuvens reflectem a luz difusa sobre esta terra, outrora esquecida. Aqui começa a chamada BAM, a Baikal-Amur Mainline, outra linha que diverge da Transiberiana e que também atravessa os confins da Sibéria até Sovetskaya Gavan, na costa do Pacífico.
Atravessa florestas de Taiga virgens, inexploradas, intactas e estende-se paralelamente à Transiberiana a uma distância mínima de 600kms, sobre o volátil permafrost.
A região que atravessa, pela sua geografia, geologia e clima, é escassamente povoada e arredada de quaisquer roteiros turísticos.
São muito poucos os ocidentais que visitam esta parte do mundo. Estima-se em escassas dezenas os estrangeiros que, por ano, percorrem esta linha. Talvez seja a próxima a descobrir...


<< anterior seguinte >>

2 comentários:

Anónimo disse...

Que energia emana dos teus textos.

«Ninguém dá por mim.Como eu gosto.»

Lindo, sim senhora.

Anónimo disse...

Estou deslumbrada com a tua descrição desta viagem.Parabéns meu filho...continua!