quarta-feira, julho 23, 2008

A Transiberiana: parte 1

O que se pode dizer acerca da mais longa viagem de comboio, através do maior continente, penetrando na mais incompreendida e misteriosa região do globo, num país que por si só já é desafiante? Eu não sei. Talvez as palavras virtuosas de Colin Thubron, escritas a abrir o seu livro "In Siberia", me ajudem a levantar uma ponta do véu emocional que paira sobre um viajante mais atento (tradução feita por mim, pois só possuo a versão original em inglês):

«Os campos gelados são atravessados, para sempre, por um homem acorrentado. Na distância, talvez, derive um rebanho de renas ou um caçador projecte a sua sombra na neve. Mas é tudo. Sibéria: preenche um dozeavo de toda a superfície terrena, contudo, esta é a impressão mais certa de nos deixar na mente. Uma beleza sombria, e um medo indelével.»

A bordo do comboio #10, conhecido por Baikal, tencionava percorrer os cerca de 5000Km que me separavam de Irkutsk, junto às margens do mítico Lago Baikal.
Para o comum dos mortais este nome pode não ter grande significado mas, para a Humanidade, o Baikal pode representar uma espécie de seguro de vida. Sendo o mais profundo, o mais antigo e mais volumoso lago de água doce do planeta, se esgotássemos todas as restantes fontes de água potável amanhã, o Baikal suportaria toda a vida durante mais de 40 anos. Para mim, além de tudo isto, é um objectivo, uma ambição, um sonho. Um sonho que se aproximava a cada quilómetro. Como se antecipa a concretização de um sonho se não com ansiedade?
Não sou homem de grandes emoções ou muitas palavras. Muito menos quando se trata de as transpor para o papel. Por isso, deixo-vos com 4 dias de notas soltas do meu logbook, que espero consigam transmitir uma ideia muito pálida do que é uma longa viagem de comboio, através da imensidão da bela e misteriosa Sibéria.

Dormi que nem um anjo. Acordo entorpecido e sem grande vontade de me erguer. Fico mais um pouco... afinal, é de descanso e muito tempo que se faz uma viagem para Este ao longo da linha transiberiana. Deixo-me embalar pelo suave movimento da composição e adormeço novamente...

Acordo. Não sei que horas são. Olho pela janela embaciada em busca de referências.

Passa finalmente uma cabana onde, num letreiro, se pode ler KM900. Se estiver correcto, estarei já em MT+1 (MT=Moscow Time=GMT+3), e isso quer dizer que já são 12h00. Quer dizer também que os percorremos em cerca de 11h30, o que dá uma média aproximada de 80Km/h. Recordo-me de ler no "In Siberia" que o comboio se movia a 50mph... parece que a cadência ainda é a mesma.

Lá fora impera a Taiga, a densa floresta nórdica de - essencialmente - abetos e pinheiros. Penetramos na maior floresta do mundo, somos rodeados e engolidos por ela.
Não é a Amazónia. Essa é a maior floresta tropical do planeta, mas esta é mesmo a maior de todas: a Taiga Siberiana, que se estende praticamente desde a Escandinávia até aos confins da Sibéria, junto ao Pacífico.

De vez em quando a barreira vegetal que nos rodeia é interrompida fugazmente e vislumbramos extensos campos verdejantes. No céu apenas algumas nuvens contrariam o imenso azul profundo.

Povoações dispersas passam desordenadamente. Casas de madeira decrepitas, pintadas de cores naturais; azul-céu, verde-erva; de longos telhados castanhos que descem quase até ao chão. Em volta, pequenos quintais onde se cultivam couves, cebolas, batatas e mais alguns vegetais que apoiam a dieta familiar.
Outras maiores ocupam parcelas de terreno superiores onde, por vezes, deambulam algumas cabeças de gado. As moradias, em si, dificilmente aparentam maiores luxos.

Por nós passam constantemente composições carregadas de matérias-primas e produtos acabados: contentores de mercadorias, toros de madeira, cisternas de crude e derivados, cereais...

A carruagem está repleta de germânicos reformados. Também alguns russos, embora poucos e discretos.

São 13h00 e chegámos a Kirov (nome antigo, agora chama-se Vyatka).

Estamos ao KM957. Passámos por mais uma central nuclear.

A composição move-se agora mais lentamente, serpenteando por entre a Taiga farta.

Sucedem-se alguns ajuntamentos de casas de madeira. Não há arruamentos, apenas estreitas veredas de terra entre as parcelas.

Está um dia maravilhoso e o comboio acelera agora mais.

Em determinados baixios junto da linha, o solo é aquoso, como que num estado transitório entre terra e água. Cresce vegetação "húmida". Por todo o lado correm riachos e ribeiras, por vezes cobertas de algas.

Paramos na estação e as babushkas rodeiam as portas das carruagens. Oferecem frutos vermelhos: framboesas, amoras, groselhas, cola e outras bagas silvestres. Há um género de pão doce e cerveja. Há vendedores de sandálias de plástico chinesas e artigos de verga: caixas, chapéus, cestas...

18h21: a primeira bateria da máquina esgota-se. Pergunto à provodnitza porque a tomada do meu compartimento não tem tensão. Ela liga um disjuntor... mas fica na mesma. Orienta-me até uma tomada no corredor. "Spasiba!". "Pojalusta!". Estamos no KM1260.

Prevalece a Taiga. Por entre a densa vegetação virgem, surgem esporádicas clareiras raramente cultivadas.

18h30: passámos mais uma zona horária, são agora 19h30.

Estamos a atravessar os Montes Urais. Estes materializam a divisão "académica" entre a Europa e a Ásia e seriam praticamente imperceptíveis, não fosse a planura imensa da Rússia europeia.

20h26: chegamos a Perm. Já tinha comido a última ração de noodles e saí para apreciar o pôr-do-sol reflectido na carruagem. À saída da estação, um obelisco com o busto de Lenine pontua o centro da rotunda. Esta estrada fez parte da "Siberian Trakt", a partir de 1863.

23h12: a noite cai enquanto nos aproximamos do KM1500.




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