segunda-feira, julho 28, 2008

O Lago

9h30. Ouço ao longe o sussurro suave duma voz feminina que chama por mim. Durante algum tempo escuto inerte, anestesiado, sem reacção a este chamamento longínquo. Subitamente, emerjo desorientado sobre a cama estreita e desarrumada. Na penumbra, é a Nadia que chama por mim.
«Acorda Miguel. Vais perder a marshrutka!» - de movimentos amortecidos pelo álcool, reajo sem demora.

Arrumo a bagagem, agora espalhada pelo chão. Poucas horas antes, o quarto fora "invadido" por um novo grupo de hóspedes, acabados de chegar de Moscovo de madrugada. Dada a minha condição fisiológica nessa noite, tinha inadvertidamente deixado os pertences espalhados um pouco por todo o lado, principalmente sobre as camas vazias... agora ocupadas.
Procuro reunir tudo sem os incomodar. Sei o quanto devem precisar de uma cama imóvel e silenciosa.

No hall, a Kate luta com a mochila para conseguir acondicionar todos os seus pertences. Por mais que tentemos encontrar uma fórmula perfeita, o equilíbrio adequado entre conforto, necessidade e leveza, é sabido que estes têm uma tendência incontrolável para "dilatar", assim que confinados ao espaço exíguo de uma mochila. Por mais que tentemos viajar leves, os poucos itens imprescindíveis que seleccionamos acabam sempre por tomar todo o espaço.
Dou-lhe uma mãozinha a acondicionar o saco-cama dentro da mochila e, com esforço, conseguimos correr o fecho.

Despedimo-nos da Nadia e saímos em direcção ao coração de Irkutsk. Faltam 15m para as 11h, hora combinada para nos encontrarmos com o chauffer da marshrutka que nos levará a Khuzhir, na lendária Ilha Olkhon, em pleno Lago Baikal.
A curta viagem até ao Central Market, primeiro de autocarro, depois de eléctrico, custa-nos praticamente meia hora. Depois, por entre a agitação caótica de compradores e vendedores e a azáfama incessante das marshrutkas conseguimos, com dificuldade, encontrar aquela que por nós ainda esperava.
Eram 11h30. O chauffer, um caucasiano robusto, bem aparentado e na casa dos quarenta, acolhe-nos a bordo da sua moderna e confortável carrinha. Ainda estamos sós, mas não seria certamente por muito tempo. A curta distância que nos separava do terminal rodoviário foi percorrida sem mais demoras.
Já no local, outro russo centraliza a angariação de mais passageiros, turistas e locais, e foi preciso mais uma hora para preencher todos os 13 lugares da marshrutka. Cada passageiro paga 700Rb ao angariador. Nós, já tínhamos combinado 500Rb com o condutor. A Nadia tratou-nos bem.

Ao ritmo que o denso tráfego permitia, deixámos a centro de Irkutsk. Depois, os seus suburbios sombrios e delapidados, numa estrada bem asfaltada quase sempre rectilínea, até que nada mais que extensas planícies verdejantes, intercaladas por suaves colinas de taiga, preenchiam o nosso campo de visão. E que visão...

Mal consigo conter a ansiedade. Antecipo as cores, a atmosfera, o cheiro e as gentes. No rosto da Kate, vejo uma calma impaciente que me tranquiliza. Inunda-me o espanto e a maravilha que ainda estarei para sentir. O privilégio de poder aqui estar, deste ar respirar. Sinto-me como se regressásse a uma terra há muito prometida, onde outrora já havia estado. Em sonhos, talvez? Inegável é estar prestes a concretizar um dos sonhos de uma vida. É estranho, é familiar... é indiscritivel.

À medida que vencemos os quilómetros da P-418, e nos afastamos de Irkutsk, sentímo-nos cada vez mais perto daquela Sibéria rural e misteriosa, a terra do Baikal e dos xamãs, cuja magia e influência espiritual ainda ecoam nestas colinas e florestas. Em Bayanday, um pequeno vilarejo perdido nas bermas da P-418, viramos para Este, pouco depois acaba-se o asfalto e entramos no estradão de terra. Mas nem por isso a velocidade, ou o estilo de condução, se alterou.

A marshrutka "voa" sobre as corrugações do estradão. Por vezes, a trepidação é tão intensa que o chocalhar metálico dos componentes da viatura torna-se ensurdecedor. Aqui nada é poupado, tudo anda no seu limite. Uma imensa coluna de pó ergue-se atrás de nós. No céu, extensas nuvens aveludadas contrastam com o imenso azul. Neste carrossel de altos e baixos, curvas e contra-curvas, declives e inclinações, sentimos a cada momento que pouco mais que a gravidade mantêm esta marshrutka junto ao solo, como se esta planasse rasteira numa dança apressada e esguia, serpenteado pela massa continental a fora em direcção às profundezas abissais do grande lago.

Por vezes, por entre as verdejantes colinas que se erguiam no nosso caminho, vislumbrávamos fugazmente a imensidão azul do Baikal. O céu, tão imponente quanto altivo e intocável, parecia estender-se ao infinito, ampliando de tal forma a grandiosidade da Natureza que ninguém nesta marshrutka conseguia conter o único sentimento possível, libertando periodicamente um exclamativo uníssono... «wooow!!».

Pouco depois, chegávamos as margens do lago junto à localidade de Sakhyurta, no estreito que separa Olkhon do continente. No cais há marshrutkas, vários autocarros e muitos automóveis, que entopem a exígua entrada da plataforma de acesso ao pequeno ferry.
Apesar das inúmeras agências especializadas no ocidente, e dos pacotes turísticos transiberianos, Olkhon permanece pouco explorada e a afluência aqui ainda é fundamentalmente interna. Famílias inteiras chegam num ou vários carros, transportando tendas e mantimentos, prontas para se instalar ao longo das praias da ilha, em busca de umas agradáveis férias balneares. Estamos a milhares de quilómetros do oceano, em qualquer direcção. O Baikal é o que de mais perto se assemelha a um grande oceano, por estas vizinhanças.

Apesar da presença autoritária dos dois ou três elementos encarregues do embarque, envergando fardamenta camuflada, não se mostram muitos interessados em manter a ordem no recinto, o que conduzia a algumas exaltações e disputas enquanto as viaturas se iam apertando freneticamente.

Subo ao cume da colina adjacente e finto demoradamente aquele mar de águas doces e cristalinas. Do outro lado do estreito, a pouco mais de um quilómetro, um pequeno recanto da ilha serve de cais ao mini-ferry. A azáfama era semelhante. Pouco depois, uma coluna de fumo negro denunciava a partida da pequena embarcação.
Regresso ao cais e sento-me junto da Kate. À nossa volta, além das dezenas de veículos, há barracas improvisadas de madeira e tela plástica, a servir bebidas e comida rápida, indícios de uma crescente afluência turística ao lago. Tudo é temporário, sazonal, construído precariamente para aproveitar da melhor forma o afluxo extraordinário de turistas proporcionado pela curta época balnear. Dentro de poucas semanas, tudo regressará à tranquilidade, isolamento e frio gélido do rigoroso Inverno siberiano.

Pouco depois, o ferry chega e desembarca as viaturas e pessoas. Acorremos ao local, expectantes que o nosso chauffer consiga embarcar com a marshrutka já nesta viagem. Assim sucede.
De Verão, este pequeno ferry gratuito liga a ilha ao continente, proporcionando aos siberianos uma estância de férias acessível e, a muitos níveis, paradisíaca. Nos rigores do Inverno, o lago transforma-se, criando uma crosta gelada com cerca de um metro de espessura que permite aos veículos circulem sobre a sua superfície. Mas, de meados de Dezembro a meio de Janeiro, e de meados de Abril a meio de Maio, a Ilha Olkhon fica isolada do resto do mundo. O gelo fino e instável não permite a circulação marítima nem sustenta as viaturas, pelo que a única via de acesso à ilha - se a houvesse - seria aérea.
Os habitantes nativos, o povo Buryat, convivem com esta realidade desde sempre e de alguma forma tem sido este isolamento o principal responsável pelo estado (quase) imaculado e primitivo da ilha. A electricidade chegou muito recentemente, em 2005, trazendo consigo uma maior abertura ao turismo, o que começa a deixar algumas marcas na paisagem. Não existe processamento local do lixo nem infraestruturas de saneamento básico.(1)
A luz suave e amena deste fim de tarde projectam-se delicadamente por entre as nuvens, incidindo sobre o espelho translúcido das águas calmas. A bordo do "дорожник" (Dorojnik), aproximamo-nos lentamente de Olkhon, a terra sagrada dos xamãs.

Chegámos. Após o desembarque da marshrutka, reunímo-nos e prosseguimos viagem. Fizemos depois mais de três dezenas de quilómetros, através do estreito caminho de terra batida, até Khuzhir, a maior povoação da ilha com cerca de 1200 almas. Apesar do crescimento recente e da proliferação da oferta comercial, as habitações permanecem rudimentares, separadas das ruas de terra por elevadas cercas de madeira. A grande maioria da população masculina ainda se dedica à pesca. As mulheres encontraram novas ocupações ligadas ao turismo para aportarem um rendimento adicional, quer através da hospedagem, quer através da venda de artesanato.

Nikita. Este é um nome que toda a gente conhece nesta ilha. Nikita Bencharov é um antigo campeão de ténis de mesa russo que encontrou aqui a sua casa e o seu propósito. Desde então, tem sido a força motriz por detrás do desenvolvimento turístico desta povoação. Ele centraliza o turismo e distribui o benefício, alojando os recém-chegados no seu "homestead", ou em casas particulares, viabilizando o formato de alojamento e pensão indispensável à generalidade dos visitantes estrangeiros.

Dirigimo-nos ao "homestead", localizado na extremidade norte de Khuzhir junto da falésia. Já tinha falado com o Nikita dois dias antes, por telefone, dando conta da minha chegada.
No átrio da recepção, deparámo-nos com uma quantidade significativa de estrangeiros. Confesso que não esperava outra coisa. Mas, ainda assim, não pude deixar de ficar surpreendido com os números. O "homestead" estava cheio e, como uma chamada, fomos confirmados para ficar numa casa particular, no centro da localidade. A Tania fez-nos companhia e mimou-nos com a sua simpatia, enquanto nos conduziu pelas ruas enlameadas pelas recentes chuvas até à casa da nossa anfitriã. O tempo está fantástico. Olkhon e o Baikal saúdam-nos!

Um chocalho barulhento agita-se conforme empurro a pesada portada de madeira que nos separa do quintal. Uma babushka rechonchuda, de compleição baixa e forte, de rosto adorável e voz doce, dirige-se a nós. Cumprimenta-nos calorosamente.
«Kapitalina! Menya zovut Kapitalina!» - apresenta-se.
«Kate, Аvstraleeyskeey. Miguel, Portugalskeey!» - respondemos!
Mostra-nos os cantos da casa e somos ambos recebidos como parte da família. O marido da Kapitalina é pescador no Baikal. O filho adolescente ainda estuda, mas está de férias nesta altura e ajuda o pai.
Instala-nos num dos quartos recentemente erguidos nas traseiras. Também há um WC "natural" (uma fossa séptica), devidamente afastado da zona residencial, e também uma banya! Prometi a mim mesmo que teria de a experimentar.
Depois de instalados, regressámos ao Nikita's em busca de qualquer coisa para comer. Lamentavelmente, a sorte já não estava do nosso lado. Do Omul servido ao jantar, nem o cheiro! Apenas restavam algumas batatas cozidas que acompanhámos com umas fatias de pão.

São 22h e o Sol esconde-se apressadamente detrás das colinas que bordejam as margens aveludadas do lago. A atmosfera enche-se de tons de azul inéditos, manchados por um suave tom quente quase indelével, numa imensa paleta memorável do tamanho dos céus. Absorvo todo aquele momento, aquela grandiosidade, como uma esponja sedenta de humidade. A Kate permanece imóvel e serena, como que meditativa, sentada junto da falésia. Parece haver propósito em tudo isto, pois sinto-me em paz. Estou em paz.

São 23h30 quando me deito. Amanhã espera-nos mais um grande dia.



(1) Post-Scriptum: É, por isso, muito importante alertar os futuros visitantes para que não levem resíduos para a ilha, como plásticos e outras embalagens descartáveis, produtos potencialmente tóxicos e não bio-degradáveis que possam acabar contaminando o solo e o lago, bem como outros detritos, pois estarão a contribuir irremediavelmente para a destruição deste recanto único. Sendo este um cuidado que deve ser universal, reveste-se de ainda maior importância nestes lugares que, em certa medida, são oásis intactos deste nosso pequeno ponto azul.

<< anterior seguinte >>

Sem comentários: