domingo, julho 27, 2008

E o Baikal ali tão perto...

Calei o despertador. Diversas vezes. Não que tivesse muito sono mas porque me sentia meio entorpecido. A vontade de me erguer do conforto do divan era nula e nem a infinita ânsia de chegar ao lago me conseguia mover dali.

Eram 11h quando, por fim, ganhei forças para me levantar. Ainda estava zonzo, a destilar. Arrumei a bagagem e, hora depois, despedia-me do pessoal. A Nadia dizia que, a esta hora, já não iria muito longe. Os autocarros para a Ilha Olkhon saem cedo. As marshrutkas, sempre antes do meio dia. Os 270kms que separam Irkutsk da ilha são longos. São necessárias 6 ou 7 horas de viagem.
Eu achava o mesmo, mas não me dou por (con)vencido sem tentar. Podia ser que encontrasse uma saída tardia ou uma boleia fortuita. Não podia era ficar aqui de braços cruzados, por mais que me agrade esta companhia! Parti.

Na Ulizta Lermontova esperei pelo 90. Chuviscava. Aproximou-se de mim um jovem russo em fato-treino. Falou comigo, presumo que a pedir dinheiro. Estava embriagado e fumava incessantemente. Estendeu um braço e exibiu a mão, onde só resta o polegar.
Demoro algum tempo a reagir. Ainda não tinha visto um russo a pedir activamente na rua. Geralmente prostram-se no chão escondendo o rosto, como sinal de vergonha. Mas este abordou-me. Não lhe quero dar dinheiro pois o fim parece-me óbvio.
"Ya ne govo'ryu po russki" - respondi, que não falo russo.
Ri-se e mantêm a retórica. Insistia em "ruble", procurando arranhar o inglês...
Passam-se vinte minutos e o autocarro não chega. O russo já tinha percebido que não se safava e estava resignado. Comprou uma lata de cerveja no quiosque ao lado e acendeu mais uma beata que encontrou no chão.
Eu também desisti do 90. Decidi apanhar um dos 80, que passam constantemente, e ver onde é que este vai parar. Segue o caminho do 90 e, quando me apercebi que divergia noutro sentido, saí na paragem seguinte. Custou-me uma caminha de 20 minutos à chuva para alcançar o destino: a gare dos autocarros.

Junto da gare concentram-se autocarros, marshrutkas e táxis. Autocarros para Olkhon só há 3 por dia e há muito que saíram. Dou uma volta pela ampla praça por onde se dispersam as marshrutkas e falo com os condutores. Hoje é Domingo e não há grande movimento. Ninguém parece ir na direcção da Ilha.
Os taxitas abordam-me e fazem os seus preços. "Doroga!" - exclamo insistentemente. Baixam o preço anunciado, mas continua caro. Outros dizem-me que não, é barato! Explicam-me porque acham que me estão a fazer um bom preço... :)
Outro taxista aborda-me e "oferece-se" para me levar por "apenas" 2000rublos.
"Ochen doroga! Pyat', OK. A'deen...doroga!!" (quatro pessoas... seria OK! Só eu... é caro!) - exclamo, enquanto gesticulo. Ele percebe perfeitamente e rimo-nos todos um bocado. Depois procura comigo uma marshrutka que me posso levar a Olkhon. Mas hoje já não tenho sorte, ninguém já vai sair para lá.

Fico junto à gare umas boas duas horas. Depois desisto e decido regressar ao hostel. Não posso dizer que esteja chateado. A noite passada tinha sido fantástica e tinha gostado muito da companhia. Em certa medida até estava feliz por não ter conseguido transporte.

O tempo continua desagradável. Está frio e chove insistentemente. As gotas parecem pulverizadas. Descem lentamente, rodopiando à vontade da brisa fraca. Apanho o "4" e vou até ao mercado chinês. Depois troco para o "1".
Junto à ponte, novo acidente entre duas viaturas ligeiras. O eléctrico não passa. Isto parece rotineiro. As pessoas levantam-se e evacuam. Não perdem um minuto a perceber o fim da viagem. Sigo-as.

Atravesso a ponte a pé. Do outro lado, decido apanhar o primeiro autocarro que aparece, o "25". Leva-me para norte, em direcção a Angarsk. Ao longo das margens do rio, estende-se a indústria ligeira que emprega as populações.
Em Novolenino desço do autocarro e dirijo-me a um quiosque. Meia dúzia de pessoas aguardam junto da paragem. Compro uma garrafa de água e sento-me junto da bagagem. Olhavam-me e comentavam. Obviamente, teriam curiosidade em saber o que andaria um estrangeiro a fazer por ali. Talvez comentassem que só poderia andar perdido e desorientado.
Não. Nem perdido nem desorientado. Se tivesse que me descrever enquanto transeunte, talvez disse-se, metaforicamente, que sou dos que preferem caminhar por becos e travessas, ao invés de praças e avenidas. Gosto de ver como as coisas são, não como me as querem mostrar.

Fico por ali a observar o movimento de pessoas e viaturas. E a ser observado. Chuvisca e tenho os pés encharcados. Já não faz diferença.
Por volta das 15h, decido-me a regressar ao hostel. Apanho um autocarro em sentido inverso e saio junto da ponte. Depois, sigo de "80" até ao hostel.

A Nadia recebe-me com um sorriso sarcástico. Ficamos à conversa até chegar o Evren.
A Nadia diz-me que pode arranjar reservas numa marshrutka para Olkhon. A passagem custa 500Rb. É razoável e não penso duas vezes. Com um telefonema confirma o lugar.
Pouco depois, a nossa conversa animada resgata a Kate do sono profundo. Também quer ir para o lago no dia seguinte. Mais uma chamada e estamos agendados para sair às 11h da manhã, do mercado chinês. Amanhã, finalmente, chego às margens do imenso Baikal!

Vamos ao supermercado. Quero cozinhar algo lusitano mas nas prateleiras não encontro o que procuro. É curiosa a disparidade nos nossos hábitos de consumo. Com excepção dos produtos estereotipados, como as bebidas, os snacks, a fruta e vegetais importados, é uma aventura descodificar os conteúdos das embalagens.
A Kate é de uma espécie vegetariana :) , come ovos e não se importa de comer peixe. Pensei em Bacalhau à Brás... mas bacalhau aqui, nem o cheiro! Só há algum peixe seco ou congelado e quase sempre é arenque ou omul, o peixe do Baikal.
Procuro alternativas mas falta sempre algo essencial.
"How about tuna?! Como na FAINA!!!" - a Kate não percebe...

Passados muitos minutos de intensa persistência, a Kate lá descobriu uma lata de atum no meio de centenas de latas de conserva! Um feito extraordinário!!
Parece-vos simples? Tentem descobrir uma lata com atum no meio de dezenas de outras latas diferentes, sem imagens do conteúdo e descrições em russo! A nossa sorte foi que "atum", escreve-se com qualquer coisa parecida com "tuna" em muitos dos idiomas. Não nos enganámos. Em russo é
тунец!

Para o jantar servi batatas cozidas com feijão branco salteado em molho de tomate, acompanhado de pasta de atum com ovos. Não é muito sugestivo nem tão pouco elaborado... mas agradou aos comensais!
Partilhámos ainda do "excelente" vinho russo que os nossos amigos mais maduros tinham comprado. Para quem já não é grande "connaiseur" quando ele de facto tem qualidade, só posso dizer que este era simplesmente horrível! Desconfio até que haviam por ali derivados de petróleo à mistura, tal o odor sintético e gosto intenso a plástico. Não o usaria nem para temperar carne!

Mal tive tempo de levantar os pratos e já a garrafa de vodka estava sobre a mesa. O que se seguiu dispensa comentários.
Não tenho noção das horas a que me deitei.


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