quinta-feira, julho 24, 2008

A Transiberiana: parte 2


09h35: acordo em Tyumen (KM2144). Já estou na Sibéria... e na Ásia.

Pelo intercomunicador ouço a mesma voz dócil e feminina que parece falar em todas as estações. Reconforta-me. Hoje passei uma noite intensa. Sonhei com pessoas que me são muito queridas. Familiares e amigos desfilaram toda a noite, manipulados pela minha imaginação. Acordei diversas vezes confuso, com dificuldade em perceber onde estava.
Seria este o síndroma dos exilados para a Sibéria? Longe de mim sequer ousar compreender tais provações... foram milhões os que deixaram tudo para trás, à força, obrigados a cumprirem pesadas penas em campos de trabalho ou, no mínimo, a nunca mais regressarem às suas famílias e origens. A esmagadora maioria era presos políticos, muitos acusados de delitos menores, sem direito a qualquer julgamento. Era sistema na altura. A Sibéria representava o fim da linha para os indesejados do regime: o czarista e, mais tarde, o comunista.
Longe de mim sequer imaginar tal sofrimento... mas terão sido assim as mais piedosas das suas noites. Neste caminho outrora caminhado a passo e sem regresso, balanço eu a bordo do Baikal. De alguma forma pairou um fantasma antigo sobre os meus sonhos esta noite, mas agora percebo claramente onde estou e o que faço aqui. E, com muito respeito, sinto-me o homem mais feliz do mundo.

Tyumen é uma cidade próspera e a primeira que foi fundada na Sibéria.

10h42: passamos a ponte sobre o rio Tobol. A flora continua semelhante e o terreno é plano. Tão plano que por vezes, por veredas desalinhadas entre abetos imponentes, fintamos aquela linha infinitamente recta que divide o azul imaculado do céu da copa distante das árvores. Penso que nunca fintei um horizonte tão longínquo.

Por entre a farta vegetação, o solo cobre-se de erva verdejante, como se toda a biomassa tivesse sido removida. O que cai por terra, é rapidamente assimilado por o que se ergue. Há vida, muita vida por aqui.

Os postes de comunicação, moribundos, talvez já centenários, são parcialmente engolidos pelo solo pouco consistente e penduram-se nos cabos que deveriam antes suportar. Não encontro um único que mantenha a sua estatura vertical.

Distingo alguma coisa por entre o verde-escuro da vegetação cerrada. Vejo cores. Vejo flores, cruzes e fitas. É um cemitério siberiano. Curiosamente, a visão é surpreendente e reconfortante. Mesmo quem, como eu, não sabe muito acerca da História siberiana, pode afirmar com algum rigor que foram muitos milhões os que pereceram neste recanto despojado do planeta. Contudo, cemitérios não são propriamente visões comuns. Não será por isso necessário ser, de modo algum, místico para sentirmos conforto ao ver que também aqui houve quem fosse enterrado com dignidade, respeito e admiração.

As planícies douradas são agora mais frequentes. Sei que entre mim e o oceano estendem-se agora alguns milhares de quilómetros em qualquer direcção. Nunca estive tão longe do mar... trivial para um russo, não tanto para um alentejano de Sines, terra de pescadores.

11h50: vejo campos verde-água por entre as árvores altaneiras. No céu apenas duas nuvens difusas mancham o eterno azul.

13h10: parámos em Ichim (KM2431). Fica junto de um rio com extensos campos alagados. As casas são minúsculas, de madeira e não se vislumbram ruas por entre o matagal circundante.

14h30: extensas planícies pantanosas e muitas bétulas mortas. Apenas os troncos brancos permanecem erectos, incólumes, fantasmagóricos. As raízes apodreceram.

Passamos por Nazy, e pouco depois atravessamos mais uma zona horária. São agora 16h00.

O comboio desliza suavemente em direcção a Omsk. Esta secção da linha foi renovada. Por todo o lado há ruínas de uma super-potência que já existiu. São as cinzas da URSS.

17h50; chegamos a Omsk. A estação é ampla e bem tratada. Aproveito a curta paragem, saio e dou uma volta pelo cais. Dirijo-me a um dos quiosques e compro o pão doce, batatas fritas, água e algumas maças.
Está uma locomotiva a vapor numa das extremidades da estação. Dirijo-me até lá e tiro uma foto, mesmo a tempo do comboio anunciar mais uma partida.

Deixamos Omsk e a sua área metropolitana em cerca de meia hora. A cidade é grande e desenvolvida. É a segunda maior cidade da Sibéria, precedida de Novosibirsk, e é para lá que nos dirigimos agora, pela secção de linha férrea que mais carga escoa em todo o mundo!
Passa uma composição de mercadorias a cada 3 minutos. A precisão é desconcertante.

20h10: paragem curta em Tatarskaya, sem grandes motivos de interesse. A estação é nova e está inacabada. Das passagem aéreas só ficaram os lanços de escadas, que terminam a 10m de altura...
Nos arredores(KM2885) distinguem-se montes de carvão e por nós passa uma composição com mais de 30 vagões de carga. Está é uma das regiões mineiras mais movimentadas da federação.

22h00: estamos parados em Barabinsk(KM3040). Babushkas vendem chocolates, bebidas e peixe seco. Sinto o fedor à sua passagem. Não sinto curiosidade...

22h15: deixamos Barabinsk já com a noite muito perto. O céu é uma aguarela de tons quentes e frios. Está belo. A cidade estende-se na margem de um lago que mais se assemelha a um sapal. Nos arredores, casas de madeira expelem densas colunas de fumo pelas chaminés. Os siberianos estão a cozinhar o jantar.

Nunca vi tanta árvore como nos últimos dias. O território da Federação Russa é rico à superfície, e sob ela. Petróleo, gás, carvão, minerais... há de tudo nesta terra outrora esquecida e exilada do próprio "mundo civilizado".
Na distância, uma enorme chaminé industrial ensombra o horizonte com a uma extensa nuvem de fumo. Há muito a fazer neste mundo.

23h00: janto uma maçã e vou para a cama ler. Durmo...


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