domingo, julho 20, 2008

Fronteira? Qual fronteira?!...

Saio do metro e emerjo numa larga avenida, a ulitsa Solyanka, poucos quilómetros a sul de Kitay-Gorod, o bairro adjacente ao Kremlin mais antigo de Moscovo.
Ligo novamente para a embaixada, mas sem sucesso. Ligo para Portugal. Arranjam-me um contacto do MNE e sou atendido por um segurança. Passa-me à emergência consular.
Expliquei a situação à simpática senhora mas também não sabem o que devo fazer. São contudo prestáveis e dizem-me que vão tentar informar a embaixada em Moscovo e que me devo dirigir para o hostel e aguardar resposta. É sábado e o dia está espectacular. Como poderei aguentar um dia e meio de reclusão?

Chego ao hostel. Fica no 4º e último andar dum edifício decadente, numa rua secundária junto à ulitsa Maroseyka. Daqui à praça vermelha são talvez 500m...
O quarto é pequeno e tem 4 beliches. Há mais 4 quartos iguais. Somos 40 hóspedes num apartamento de 150m2! Não sobra muito espaço para esticar as pernas.
Os que se amontoam no exíguo hall de convívio não parecem muito simpáticos. A recepcionista é.
Há dois frigoríficos (que parecem aquecer) de refrigerantes e cervejas. Nas paredes, cartazes exibem a velha propaganda comunista e forram uma parede por completo. Observo-os. Sempre gostei destes cartazes... e também das pinturas que costumavam fazer nas paredes. No Alentejo, onde cresci, recordo-me de ver muitas paredes decoradas com motivos políticos de esquerda. Não há marcas. Só icons: o proletariado, o herói do povo.
Na outra parede, em oposição, publicitam-se hotéis noutros locais da Rússia e Ásia (que este é ponto de passagem para viajantes trans-siberianos), parcerias comerciais, agências de turismo... a Rússia já mudou. A alegoria popular do Agricultor-Herói e da Mãe-Rússia, que tudo dá, já cedeu o lugar ao oportunismo e faro comercial dos "novos" russos. O caminho é evidente: já foi trilhado. Agora seguem na senda do capitalismo desenfreado, imitando os serviços - e os preços - dos seus mais badalados vizinhos ocidentais. Na nova Rússia já há de tudo, a um preço... pois os russos já perceberam que agora é tempo de abraçar os hábitos ocidentais e lucrar com a globalização e abertura ao ocidente, com tudo o que de bom - e mau - ela acarreta.
Contudo, não é surpresa que os maus hábitos sao os mais difíceis de perder... e os mais fáceis de adquirir. A nova revolução cultural segue o seu curso. Hoje inspiram capitalismo e expiram autoritarismo. Agora. Já. É este o tempo da Rússia.
E que diria Lenine e Estaline se vissem esta nova Rússia? Talvez Estaline se torça na sua cova... pois Lenine é exibido no mausoléu e não há testemunhos que se tenha manifestado... até ao momento.

Umas horas mais tarde recebo a chamada de Portugal. Já informaram os diplomatas da embaixada e não podem fazer nada agora, tenho de aguardar por segunda-feira.
"E se a policia me pede o passaporte?" - pergunto.
"Talvez seja melhor aguardar no hotel..." - sentenca de encarceramento.

Entretanto, conheço dois dos colegas de quarto. O Miguel e o Dominguez são galegos e estão lá a "estagiar" um mês, após um ano de curso de Russo em Espanha. Dizem que não se conseguem fazer entender - ou miguem os quer entender - e que acabam de ser interceptados pela policia... e que aquele papel rançoso que lhes deram no aeroporto, e que já tinham esquecido e (felizmente) enrodilhado no fundo das mochilas, afinal é importante e safou-os duma pesada multa... e de mais problemas.
Saem para jantar e fico para trás. É melhor não arriscar... ainda agora comecei a viagem. Passo o que resta da tarde, e a maior parte da noite, a dormitar, a ouvir música e a ler.
"Nunca mais é segunda..." - e o Kremlin ali tão perto...

Junto a roupa suja e peço que me a lavem. Cobram uma pequena fortuna, mas agora não tenho disposição nem paciência para actividades domésticas... nem quero aparecer na embaixada a tresandar.

Volto à leitura e horas depois chega mais um hóspede...
"Hi, my name is Luciano!" - exclama num sotaque inconfundível.
"Viva! Sou o Miguel!"

Brasileiro de São Paulo, médico, acabadinho de aterrar em Moscovo, vai ficar por aqui 5 dias e outros tantos em S. Petersburgo. Pousa a mochila e começa imediatamente a preparar-se para a noite!
"Vou pegar ai uns clubes! Quero ver essas mulheres!!" - a recepcionista, curiosamente, deseja-lhe boa sorte.
"Sacana!! A que horas devo ligar para a tua embaixada??" - brinco.

De camisa havaiana, ar confiante e enérgico, sai para a noite moscovita.
Leio durante mais algumas horas e adormeço novamente a ouvir musica.

Acordo. Não sei exactamente que horas são mas também não é relevante: ainda é domingo. Mais tarde, vejo que o relógio do telemóvel marca 9h20 mas já lhe perdi o rasto ao fuso horário.
Os galegos já acordaram e o Luciano ainda dorme profundamente. Deve ter tido uma noite cansativa.
Uso o PC do hostel e o relógio indica 11h30. É melhor, mas ainda assim é cedo. Pelo menos para quem vai passar todo o dia fechado no hostel...
Quase cedo à tentação de sair, de me esquivar só ali ate ao Kremlin, quando ouço na recepção comentários acerca da "actividade policial" na praça vermelha.
Não quero comprometer esta viagem. Não sei o que arrisco se me "apanharem". Espero. Nem tenho sentido muita fome.

Deambulo preguiçosamente pelo hostel. Sento-me num sofá e pego num guia LP "Russia & Belarus" que repousa sobre a mesa. Às tantas, deparo-me na pág. 720:

<< Note that there is effectively no border between Belarus and Russia, so if you're arriving from Russia (on a train with final destination in Belarus) you may not encounter any border guards and in theory it is possible to enter and leave (back to Russia) without a visa. >>

Isto projectou alguma luz sobre o assunto. Afinal não fui controlado simplesmente porque não há controlo! Mas, permanecia a duvida: então o que deve um viajante fazer? Porque me mandou o policia para trás, até Smolensk?? A embaixada também não sabe??
Continuo a leitura e pego noutro guia, o LP "Eastern Europe", onde encontro na pág. 96:

<< As we went to press, there was effectively no border between Russia and Belarus. In theory, it's possible to enter Belarus by train and leave it for Russia - or go to Russia and back from Belarus - without going through passport control, and therefore without needing a visa for the country you're sneaking into. However, a hotel won't take you without a visa, so you have to stay with friends or rent an apartment, and if your visa-less documents are checked on the street (unlikely unless you're a troublemaker or a person of colour), you will be deported. >>

Um cenário animador, portanto. Era informação um pouco mais explicita mas, ainda assim, muito lacónica. Continuava sem saber em que situação é que eu estava. Tinha visto para ambos os países... só não tinham sido validados, pensava.
Passo o resto da tarde a carregar fotos e a navegar pela internet à procura de mais informação. Não encontro nada.

Por volta das 18h30 regresso ao quarto e o Luciano já desapareceu. Entretanto devolvem-me a roupa lavada... e molhada. Estendo-a pelos beliches. Passo o resto do dia a ler.

Os galegos regressam cansados. Hoje viram muita coisa. Foram ao Gorky Park e dizem que não vale a pena perder por lá tempo.
Pouco depois das 21h, regressa o Luciano. Conta-me os detalhes da farra nocturna... quatro discotecas e não "pescou" nada. Recordo as palavras da recepcionista.
Acordou já depois das 18h e foi passear pelas monumentais estações de metro. Admiro-me como conseguiu dormir tanto.
Umas horas mais tarde, estende-me um cartão de visita: Luciano Rotella - Medicina do Sono.

Entretanto, já arranjou programa para a noite. Andou a explorar as potencialidades do HC (Hospitality Club) e vai sair com uma amiga! "É isso aí, cara!!"
O hostel, à semelhança do resto da cidade, está sem a vulgar àgua quente centralizada. Todos os anos, durante um mês quente - Julho ou Agosto - o sistema é desligado para «limpeza e manutenção». No hostel afixaram um cartaz que "promete" a instalação de uma caldeira «dentro de dois dias». Não sei precisar quantas semanas tem... mas tomei banho mesmo assim.
O pessoal começa a encher o hostel. Vem um aroma agradável da cozinha. Surge mais um residente no quarto. Alto, cabelo longo, liso e negro, enormes patilhas e uma grande cicatriz no lábio superior que lhe dificulta a fala. O seu inglês é básico. Chama-se Giorgio e desvio o meu "estendal" para que possa fazer a cama.
No hall um grupo de 7 pessoas diverte-se em torno dumas garrafas de vodka. A julgar pela forma como arrastam as palavras, já estão fresquinhos. É o que dá beber vodka sem "zakuski" (aperitivos, normalmente pickles, pão preto, carne ou peixe secos, etc)! Qualquer russo dirá que não se deve beber vodka sem "zakuski", senão acaba-se embriagado!!...

Volto ao quarto e leio ao som da musica, até dormir. Amanhã, finalmente, acaba a minha "pena"...

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1 comentário:

Anónimo disse...

tudo bem Miguel?

Sou o Luciano Rotella da Brasil que esteve contigo em Moscow no albergue,esse ano irei a Londres e escócia no dia 26 de Dezembro até 11 Janeiro por onde vc estará no período?
Posso pedir p vc tirar meu nome do seu blogue,deixa a história que é boa mas tire o meu nome pois meus pacientes no Brasil estao lendo isso e me contando fora minha noiva que me encheu muito o saco achando que fui vijar p se divertir de outras formas...

abraçao p vc