sábado, julho 26, 2008

Irkutsk: no coração da Sibéria

Está a chover e abandono a composição. Percorro o extenso cais em direcção à saída. A agitação é enorme. Centenas de pessoas concentram-se sob os alpendres e salões da ampla estação de Irkutsk. São muitos os que esperam passageiros e mais os que aguardam o seu comboio.
Curiosamente, o WC tem portaria. Consigo descodificar as instruções da porteira e encontrar o depósito de bagagens, onde me desfaço da mochila por 54 Rublos. Não pretendo 24h... mas é a fracção disponível.
Saio para a larga rua alagada e procuro "sintonizar-me" com os transportes. Há táxis, há carrinhas de 9 lugares em serviço colectivo(com lotação aparente de 20 pessoas), há eléctricos e autocarros. Como funciona o tarifário, eu ainda vou descobrir...

Do outro lado da rua, erguem-se dezenas de pequenos quiosques que vendem mercearias ao passageiro menos preparado. Na esquina há um snack-bar de aspecto moderno. Entro e verifico que servem refeições ao estilo cantina. Pego num tabuleiro e percorro a curta bancada, sondando as prateleiras e as suas enigmáticas iguarias. Decido-me por uma sandes de "qualquer coisa" e peço também uma tijela de borsch, um café instantâneo (má decisão, como é de esperar) e um refresco. Sento-me junto de uma das paredes vidradas e observo.

A quantidade de homens desocupados ou, pelo menos, ocupados com uma garrafa ou lata de cerveja é grande. Há alguns já bastante embriagados a deambular erraticamente, molestando as pessoas. Fora o típico burburinho e azáfama dum local desta natureza, tudo parece tranquilo e normal.

Sei que não é fácil arranjar bilhetes daqui para a Mongólia sem alguma antecedência. Decidi comprar logo o bilhete para Ulan-Bator e evitar percalços de última hora. A funcionária da bilheteira internacional, numa sala com ar condicionado e sofás luxuosos no primeiro andar da estação, não sabe inglês mas entende perfeitamente o meu código pictórico escrito.

Já com o bilhete guardado, resolvo avaliar os transportes locais. À saída da estação acaba de se imobilizar um eléctrico degradado, em tudo semelhante aos de Varsóvia, com ar de pouca ou nenhuma manutenção nas últimas décadas. Entro no meio da multidão apressada e vejo quanto e como pagam.
Enfiam uma nota de 10 Rublos pelo orifício junto do guarda-freio, que devolve um pequeno bilhete de papel. "OK! Isso faz-se!" - penso. Mas teria agora de praticar...
Entro para a "lata" junto com os últimos do extenso pelotão e fico apertado mesmo junto do tal orifício. Compro o bilhete e guardo. De imediato me tocam nas costas e vejo um caucasiano de meia idade a estender-me uma nota de 50 Rublos. Só poderia significar uma coisa (acho eu...). Devolvi o bilhete e o troco.
"Pyat!!" - exclama, com aquele ar irritado de quem repete algo não ouvido à primeira. Deu jeito já saber contar em russo... Devolvo-lhe os restantes quatro bilhetes.
De imediato chega mais uma nota. Depois, outra... e mais outra. Em poucos minutos estávamos todos a sorrir uns para os outros. Eu estava deliciado com a situação!

Após um par de paragens há mais espaço e "demito-me" da minha função. Vou para o meio do eléctrico e vejo que o procedimento é mais complexo: há que introduzir o bilhete de papel fininho na ranhura duma pequena maquineta de obliterar e pressionar energicamente uma alavanca. Isto faz com que o bilhete fique completamente esburacado! Cinco segundos depois tinha uma russa alta e encorpada, de traje casual e pose formal a dirigir-se a mim. Não entendia o que me dizia, mas quando olhei para o crachá no seu peito percebi o que queria. Uma fiscal. É uma "pica"!
Avaliou o meu bilhete e devolveu-mo. Parece que passei no teste do eléctrico!...
Ainda agora não sei o que teriam aqueles furinhos todos de tão especial que os distinguissem de quaisquer outros furinhos de qualquer outra viagem. Talvez nada. talvez não seja preciso distinguir. Talvez não hajam assim tantos prevaricadores ou, num eléctrico lotado, não teriam passado tantos rublos por mim em direcção àquele pequeno orifício. Talvez nem fosse necessário haver fiscal, nem papelinhos furados! Talvez seja mesmo assim que as coisas funcionam nesta terra de "criminosos exilados".

Atravessámos a longa ponte para a margem direita da cidade e, já na Ulitsa Lenina, desci do eléctrico. Procurava um internet café para sossegar algumas almas e aliviar os cartões de memória. Se houvesse tempo, despejava também alguns pensamentos no Ponto.
Trouxe dois guias. Não por redundância, que de facto são em grande parte, mas para desempate. O conceito, se calhar, é estranho. A minha ideia é manter uma viagem democrática, principalmente quando ando por locais desconhecidos. Por isso, preciso de mais 2 opiniões! Assim, somos três! Em caso de dúvida, há referendo. Consulto ambos os guias e avalio a minha própria apetência... e ganha a maioria!
Mas, como disse e é natural, ambos os guias possuem muita informação em comum, pelo que mantenho uma democracia "por conveniência" para evitar não perder nem a espontaneidade - sem a qual não se pode realmente viajar - nem os motivos de interesse, nem as recomendações sempre úteis de alojamento. Este último um assunto deveras obscuro, principalmente às dez da noite numa qualquer localidade pequena e esquecida neste mundo...
Tudo isto para dizer que os guias também podem ser péssimos conselheiros... principalmente quando desactualizados. Sob a chuva intensa, percorri toda a cidade em busca dos quatro netcafés que ambos os guias totalizam. No seu lugar encontrei diversos serviços como uma agência de trabalho temporário, conforme percebi após ter entrado apressadamente pela porta, encharcado, e ter deixado as quatro jovens russas a rir quando lhes disse várias vezes "internet" a apontar para os PCs sobre as secretárias... até que, por fim, uma exclamou sorrindo: "Don't know!!".
Outra das vezes, entro num hall estilo Motel onde num sofá "vintage" se estendia um imenso caucasiano fardado de segurança. Virei as costas apressadamente e saí de fininho! Nos restantes dois endereços, nada mais que portas ferrugentas e encerradas encontrei. Posto isto, estava convencido que todos os siberianos teriam "net" em casa...

11h30: Ainda não tinha alojamento para a noite. Imaginam para onde me virei? Pois é... não se pode viver com eles, não se pode viver sem eles! Agora só precisava de encontrar um telefone público que funcionasse!!...
Decido por fim seguir para a estação de comunicações da cidade que, supus, fosse algo mais duradouro e que pudesse sobreviver a uma edição revista dum guia!!
Claro está, não cheguei ao destino. Andava já pelas ruas secundárias, farto de passar tantas vezes pelas mesmas avenidas, quando esbarro num estreito e obscuro acesso a uma cave. Num cartaz pouco vistoso afixado na parede, lia-se:
Интернет. Suponho que o meu cirílico por esta altura estaria já muito melhor, pois na minha mente soou imediatamente uma campainha. Internet!!
Completamente ensopado, desço os estreitos e imundos degraus da escada.

A cave eé exígua. Os mais de 20 computadores garantem também uma atmosfera quente e abafada. Não terá mais do que sessenta ou setenta metros quadrados. Olho em redor e dirijo-me ao jovem recepcionista:
-"Priviet. Internet, pojalusta?" - pergunto se posso usar a internet.
-"Da... dva!" - responde, indicando-me a máquina 2.
Instalo-me e carrego umas fotos. Sem surpresas, a ligação é tão lenta que impossibilita grandes uploads. Não carrego mais do que 10 fotos andas de desistir da empreitada.
À minha volta há sete ou oito adolescentes a jogar online. Exclamam e saltam gargalhadas. Não percebo o que dizem mas sinto-me aqui bem. Também não tenho pressa. Chove lá fora e as calças fumegam-se nas pernas.

Aproveito e tento escrever mais qualquer coisa aqui no ponto. A cabeça está cheia, a estourar de eventos, impressões e sentimentos. Não consigo destilar isto... é preciso tempo. O tempo ajuda a refinar o importante. Eventualmente, sobrará o essencial. E assim seleccionamos todas as memórias. Vou ao fórum Nomad's e deixo uma mensagem aos amigos:

Bem, dei aqui o saltinho so' para agradecer as mensagens que me tem enviado. Quando posso, vou recebendo/lendo e e' deveras agradavel perceber que ha' por ai' quem acompanhe estas coisas! Perdoem-me nao responder! Eu sei que voces sabem que eu fico agradecido! ;)

Estou em Irkutsk, na Sibe'ria, junto do Lago Baikal para onde irei amanha. O tempo esta' pessimo!

Atravessei um terco deste planeta em 4 noites, e sinto-me mais vivo do que nunca! Mas la' chegaremos... por agora, consegui deixar mais algumas palavras la' no ponto (que e' mesmo, mesmo pequeno :) )!


Faço uma pesquisa por alojamento no Google. Estou aborrecido com os guias! Saltam dois ou três resultados óbvios em resposta a "hostel+irkutsk". O primeiro, o Baikaler Hostel, está cheio. Tento o segundo, o Baikal Hostel (nomes originais, hum?). Tem cama para mim e fica um pouco afastado do centro, na margem esquerda do Rio Ankara. Não tem problema, continuarei a minha avaliação aos transportes públicos locais.

Deixo o netcafé por volta das 16h00. Já não chove, embora o céu permaneça tão sombrio como antes. Desço a Karla Marka e depois a Lenina. Quero apreciar melhor as principais avenidas sem ter de semicerrar os olhos por causa da chuva. Há bancos, museus, jardins, quiosques, escritórios, restaurantes, lojas de vestuário moderno. Nas ruas caminham pessoas alegres, bem aparentadas, de todas as idades. Os edifícios apresentam uma traça clássica, sóbria, robusta, de 5 ou 6 andares. Imprimem uma dimensão sólida e austera, mas grandiosa, à cidade.
Deixo-me levar pelas avenidas até junto da Ponte. Atravesso uma vizinhança mais degradada. As moradias isoladas estão em ruínas e a madeira dos portais e janelas está podre e esburacada. Os pátios, outrora ajardinados, são agora mato denso. Não se vê vivalma. Tão perto do centro, tão longe do mundo.

Apanho o eléctrico para a outra margem. Ao chegarmos à entrada da ponte, parámos. No sentido contrário, outro eléctrico abalroou um automóvel. A polícia já está no local mas não parece que esteja a desembaraçar a situação. Os intervenientes exclamam e esbracejam como se nenhum estivesse disposto a admitir a culpa. O trânsito, de alguma forma, passa pelo embaraço como farinha por uma peneira. Já os eléctricos terão de aguardar o desimpedimento da via...

Desço na estação e resgato a bagagem. Pelo telefone, a simpática recepcionista tinha-me instruído a caminhar uns 200m para sul, depois virar à esquerda para a praça, de seguida apanhar o autocarro 90, depois seguir até à Mikro... mas era informação a mais! 90... é tudo o que preciso saber (afinal tenho um guia... com um mapa).
Saio da estação e sigo a pé ao longo duma estrada densamente esburacada e lamacenta. Procuro esquivar-me às enormes poças e, ao mesmo tempo, fintar os carros que levantam autenticas torrentes de lama sobre os passeios... não há a menor delicadeza para com os peões.
Ao fundo da rua, vejo autocarros passarem frequentemente. Interpelo uma senhora de meia idade e pergunto-lhe pela paragem de "aftobusa" ao mesmo tempo que escrevo 90 na palma da mão. Não compreende e repito. Outra vez. A indiferença inicial deu lugar a um sorriso caloroso e uma descarga de direcções (em russo, claro...) até à paragem de autocarros mais próxima! Por vezes, parece-me que ficam totalmente convencidos que os compreendo perfeitamente... enfim, no meio do discurso lá dissequei o atalho enlameado que deveria tomar.
Cerca de 1km depois, chego a uma praça onde alguns tendeiros ainda tinham as bancas montadas. Ao centro há um jardim. Quer dizer... árvores! Algumas pessoas estão por ali a conviver. Aproximo-me delas para mais uma dose de interacção quando... passa um autocarro. Na esquina da rua adjacente, está uma paragem. "Deve ser ali..." - e sigo para lá.

Táxis, marshrutkas (como chamam aqui aos minibus) e autocarros vão passando. Eis que, por fim, chega um "90"!
Subo a bordo e tento decifrar a tarifa. Entrei sozinho e, portanto, não pude ver como se processa. Olho em redor em busca de uma referência. No chão, junto do condutor, está uma caixa de papelão cheia de notas e moedas. A maioria são de 10rublos... Estendo uma destas ao motorista. Pegou na nota e deixou-a cair dentro da caixa. Não olhou para a nota. Nem olhou para mim. Nem pestanejou.
Sigo para um lugar vazio. Passei no teste do autocarro!
Agora, só precisava de encontrar a paragem correcta...

Ulizta Lermontova. A larga e rectilínea avenida estende-se por vários quilómetros ao longo da margem esquerda do Rio Angara. Sabia que tinha de sair algures junto ao número 136. Os edifícios de apartamentos sucedem-se, irregulares, intercalados por recintos arborizados, pracetas de estacionamento, estradinhas, estações de serviço, armazéns e escritórios. As suas fachadas são amplas, em tijolo de barro, com largas janelas e marquises fechadas. Consigo acompanhar a numeração até perto do 86, depois perco as referências.
Os russos não numeram as portas, apenas os edifícios. Independentemente destes se assemelharem a um único ou a vários concatenados. Para "simplificar", nem todos exibem os respectivos números... e por vezes só há numeração nos extremos do quarteirão.
Sei que estou perto... mas o "perto", nesta avenida, pode significar uns quilómetros de caminhada. Espero mais um par de paragens e arrisco.O autocarro imobiliza-se. Pela janela vejo o reclame no rés-de-chão de um edifício: "Mikrochirurgia Glaza". Ecoam-me na mente as palavras ao telefone. É esta! Em dois segundos saltei do autocarro.

Após algum "sobe e desce a avenida" lá encontro o 136, um edifício jovem, sobre-elevado e de fachada avermelhada. Dou a volta pelas traseiras e localizo a entrada atrás duma larga porta de ferro.
Toco à campainha do hostel. Da marquise contígua, vejo espreitar uma jovem de olhos profundamente azuis, longos e lisos cabelos loiros.
"Miguel?" - pergunta.
"Da!!" - respondo entusiasticamente!
"We're expecting you!" - responde com um acolhedor sorriso.
Passados uns segundos soava o trinco eléctrico da porta.

Entro no apartamento, pouso a bagagem e descalço-me. Dou uma volta pelas divisões para conhecer os "residentes". Há um grupo de três inglesas que está mesmo de saída. Vão para Ulan-Bator. Sentados em torno da mesa da cozinha está a Nadia, a recepcionista do hostel; a Kate, uma australiana a viajar pelo SW asiático; o Evren, um cipriota exilado na Letónia e uma amorosa "avozinha" francesa de 60 anos, que acaba de terminar uma missão de 2 anos na Mongólia. Recebem-me como se nos conhecêssemos há décadas. Conversamos demoradamente, até eu me lembrar de que não tomava banho há 5 dias... devia tresandar. Os meus novos amigos, provavelmente, tiveram a delicadeza de não reparar.

Tomo um banho demorado e regresso ao convívio acolhedor do grupo. Já tinha saudades de companhia.
A Kate é jornalista, tem 27 anos e demitiu-se recentemente para tornar a viver. Há dois meses que viaja pela China e Mongólia. Prepara-se agora para ficar um mês na Rússia. Depois... logo se vê.
O Evren é um "faz-tudo". Faz o que pode e quer, desde trabalhar em bares e cuidar de crianças em acampamentos de Verão até trabalho comunitário e voluntário. Agora vive em Riga. É originário do Chipre mas deixou o seu país há 2 anos por divergências com a ocupação turca. Diz que jamais cumpriria o serviço militar por um país que não é o seu. Para o Estado cipriota turco, é um desertor. Nessa condição, apenas pode permanecer no Chipre 3 meses por ano e tem de pagar uma multa de 3000£. Nunca mais voltou. Compreendo e admiro a sua coragem.
Vai para a Mongólia nos próximos dias, depois para a China e regressará a casa via Hong-Kong. Como eu.

Juntam-se a nós um galês de 50 anos e uma adorável londrina de quase 70 (setenta) anos!! Falamos sobre o mundo, os povos, as culturas e política. Falamos sobre a vida, a já vivida e a que ainda temos para viver. Sobre o passado e sobre o futuro. Pois o nosso presente é este, o momento onde nos encontramos ali juntos, em torno da mesa duma cozinha, decorada com um imenso mapa da federação que ridiculariza as dimensões da Europa, num apartamento exíguo em Irkutsk, junto do eterno Lago Baikal neste remoto recanto do globo a que se chama Sibéria. Agora estou integro, indivisível, uno, imenso e coeso. Estou completo, cheio de sonhos ali tão perto, sinto que consigo estender uma mão e envolver a Terra, fervilho de vida. Não quero mais nada, só preciso disto. Sinto-me livre e à solta. É isto que eu mais desejo para mim.

A noite é longa em torno das garrafas de vodka. Divertidos, comemos zákusky e bebemos mais. Saboreamos omul fumado, queijo e salsicha. Passa das seis e meia da manhã quando me deito. O despertador tocará às 10h.


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