terça-feira, julho 22, 2008

Mais para Leste...

Não eram ainda 8h30 e já estava a acordar o Luciano e o Rafael. É dia de banya, um ritual tipicamente russo e que não deve ser ignorado em qualquer visita, particularmente, a Moscovo.

Saímos do hostel e tomamos um pequeno-almoço volante. Uns folhados de limão quentinhos, comprados a uma babushka numa passagem subterrânea, servem perfeitamente.

Mas o que é banya e porque é tão importante? Bem, fazem-se negócios, concertam-se leis e decidem-se guerras nestes locais de culto! O ritual dificilmente agradará a pessoas tímidas. Genericamente, são balneários públicos onde se tomam banhos de vapor, em saunas aquecidas a lenha, seguidos de violentos choques de temperatura através de imersões em piscinas, tanques ou banheiras cheia de água fria. É repetitivo e desinibido e consiste, basicamente, em despir o corpo e suportar o calor abrasador e húmido da sauna, o mais possível, até este transpirar por todos os poros. Durante a cozedura, é prática coçar todas as regiões do corpo por forma a eliminar toda a epiderme superficial morta. Nesta altura, o corpo está pronto para ser castigado com uma tareia bem aplicada recorrendo a chicotadas de tenros ramos de bétula. Aqui é recomendável pedir a assistência de alguém capaz (o ideal seria uma amiga meiga (ou um amigo, conforme o caso)... mas nos banya públicos existe segregação sexual - embora alguns disponham de salas privadas onde, tecnicamente, se podem misturar indivíduos de ambos os sexos) para garantir que todas as zonas corporais recebem um eficaz - e gentil - tratamento! Posto isto, a vítima deve correr para fora do forno e mergulhar repentinamente na água gelada. No inverno, onde possível, esta última fase é substituída pelo refrescante acto de rebolar na neve ou mergulhar num lago gelado através dum orifício na sua superfície...
Após cada ciclo, os participantes retiram-se para confortáveis salas de convívio, onde podem relaxar, conversar e beber shots de vodka ou canecas de cerveja. Os verdadeiros especialistas são capazes de repetir cada ciclo umas 10 vezes ao longo dum período de duas horas, convencionado como ideal para manter uma pele resplandecente! Já a frequência destas sessões varia consoante a altura do ano, e as posses do indivíduo, não sendo de estranhar que hajam russos que apenas se possam dar ao luxo do banya uma vez por mês.
Dado que já se apercebeu da natureza íntima e desinibida do ritual, talvez agora lhe seja mais fácil compreender o seu papel e importância na sociedade russa, particularmente nos meandros do poder económico ou político. Não poderia deixar de testemunhar esta tradição.

Seguimos a pé até ao Sandunovsky Banya, o mais antigo e luxuoso balneário moscovita. Temos azar... hoje a ala "Highest Class", a secção mais luxuosa do balneário, encerra para limpeza semanal. Resta-nos a ala "Second Highest Class".

Pagamos o acesso básico e descemos à ala, que fica no piso inferior. Há uma panóplia de serviços adicionais, executados pelos profissionais do banya, como massagens com (muito) sabão ou assistência personalizada na sauna mas, para uma primeira incursão e dada a natureza dos assistentes, achámos por bem manter alguma distância e apenas nos dedicarmos à observação e aprendizagem.

O acolhedor hall de entrada ostenta uma wall of fame onde exibem fotos de personalidades famosas que por ali passaram. Entre elas, o senhor da foto. A nossa, certamente, não virá a constar naquela parede. Por isso, aqui a coloco eu!


Não contei quantos ciclos «quente-frio» executámos nas duas horas em que lá estivemos. Mas foram certamente mais do que os russos que estavam connosco. Estes permaneciam menos tempo dentro da sauna - talvez nós, os latinos, sejamos mais tolerantes ao calor(?) - e mais tempo nas salas de convívio. Mas vinham regularmente à sauna onde eram profissionalmente chicoteados pelos assistentes. Por fim, se alguma impureza restasse, foi com certeza removida após serem esfregados com fartura de sabão durante mais de meia hora... tudo, obviamente, por razões de higiene!

Ao meio-dia já estávamos despachados e preparados para atacar a zona ocidental da cidade, onde se localizam algumas das mais interessantes atracções moscovitas. Apanhámos o metro até à estação Kutozovskaya, assim chamada porque - pasmem-se - fica na Kutozovsky Prospekt. A avenida foi assim nomeada em honra ao marechal Kutuzov, que comandou as tropas russas na vitória sobre Napoleão, e é também onde os russos ergueram o Arco do Triunfo. Também aqui ficam alguns dos melhores museus militares. Visitámos o museu Borodino, dedicado exclusivamente a essa batalha de 1812 em que os russos derrotaram as tropas de Napoleão e que exibe fabulosos panoramas a 360º (fotos); e o titânico Museu da Grande Guerra Patriótica (Central Museum on the Great Patriotic War), com quase 25.000m2 de exposições dedicadas à participação russa na segunda grande guerra, particularmente à sua intervenção militar dos anos 1941 a 1945 e que foi, de longe, o melhor museu militar que já tive oportunidade de visitar. Nenhum outro encontro com a História da segunda grande guerra, em toda a minha vida, me foi também tão revelador como este. E também já percorri os palcos e museus, franceses e americanos, na Normandia.


É por demais evidente a polarização ocidentalista da nossa educação. Felizmente. os tempos são outros mas ninguém pode explicar porque é que só ensinamos às crianças a perspectiva americana (ou americanizada) da guerra. Há uma perspectiva soviética tão ou mais rica por revelar e que não é sequer abordada... e faz realmente falta conhecer todas as perspectivas sobre os mais importantes acontecimentos da Humanidade. Para que não se cometam os mesmos erros ou se façam juízos precipitados.

Aqui, em exibição, estão incontáveis objectos de interesse histórico desde a bandeira Nazi que pontuava o Reichstag - quando as tropas russas tomaram Berlim - até objectos pessoais dos soldados, passando por armamento, mobiliário, panfletos de propaganda, obras de arte, panoramas... enfim, uma miríade infindável de factos para conhecer nas mais diversas formas de expressão. No centro, uma enorme cúpula redonda alberga um memorial onde constam os nomes dos militares russos que perderam a vida nesta campanha. Um local solene e grandioso. Só para terem uma pequena e incipiente ideia, vejam algumas fotos aqui.


Foi já ao fim da tarde que demos por terminada a incursão neste admirável mundo, para mim, novo. Percorremos os extensos jardins ao longo de quilómetros e terminamos com uma visita à exibição de engenharia militar ferroviária e aeronáutica, onde constam desde locomotivas, pontes, tanques, helis, bombardeiros, MIGs, etc até construções militares entrincheiradas. Fica a escassas centenas de metros do museu patriótico. Podem ver algumas fotos aqui. Vale a pena darem lá um saltinho.


Regressámos a casa, não sem antes passarmos por outra filial do My-My para forrar o estômago. Borsch, naco de porco grelhado com couve e batatas, refeição deliciosa e coroada com uma fatia de bolo de chocolate! Bem merecida após a extensa caminhada do dia!
Chegamos ao hostel por volta das 21h. Tenho tempo para carregar algumas fotos e despedir-me do pessoal. Desço à estação de metro e chego à Yarolavskaya às 22h55. As indicações são confusas e tenho alguma dificuldade em encontrar o cais 1, acessível pelo exterior da estação. Finalmente, dou com o cais, onde já ruge o Baikal. Mal tenho tempo de comprar água e alguns noodles instantâneos antes de correr para a minha carruagem.
Mostro o bilhete à provonidza e esta acompanha-me ao interior do vagão. Não percebo bem porquê... mas a resposta não tardou.
Cama 37. Cada vagão Kupé tem 9 compartimentos de 4 camas, ou seja, no total são 36 camas. Nem me tinha apercebido disto antes! O meu compartimento afinal vai ser o «reservado», um compartimento de duas camas onde normalmente fica o pessoal da empresa e onde costumam dormir as provonidzas - as assistentes do comboio. Mas, como me venderam um dos lugares.... vou ficar sozinho!
A principio desgosta-me a ideia... mas à medida que me vou apercebendo dos restantes passageiros, um enorme grupo de idosos germânicos a viajar em pacote turístico, fico cada vez mais feliz no meu compartimento privado! Afinal, podia ser pior...

A composição já iniciou a sua lenta peregrinação para leste. Deito-me na cama superior, pois já transformei o rés-de-chão no meu escritório! Reparo que os noodles já passaram todos da validade há quase dois anos... e quem é que planeia as coisas com calma?? Arghhh!

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