sábado, janeiro 07, 2006

Dia 4: De Alcoutim a Loulé

Bela noite de sono. Lá fora, estava um dia risonho e convidativo.

Apressámo-nos a tomar o pequeno-almoço na pousada. Pelas 10:00 estávamos a saltar para cima das motos, prontos para mais um dia de "verdasca", desta feita pelas terras do "Al-Gharb". O destino alinhavado para o dia era Monchique.
Deixámos Alcoutim, junto às margens do Vascão, seguindo um estradão recente que nos levavia ao paredão duma nova represa.
Poucos minutos depois alcançávamos, por mero acaso, a última zona espetáculo do Dakar em terras lusas. Inevitavelmente :) seguimos pela pista! As imagens seguintes dispensam comentários...




Com o ânimo ao rubro :) perdi os colegas de "prova" e acabei por ficar à espera junto a mais um riacho, passagem que me pareceu boa para mais umas fotos ;)
Esperei e desesperei, até que finalmente liguei e não tinha rede... continuei.
Já no topo da serra, lá apanhei rede e recebi a indicação do seu paradeiro: tinham perdido a pista algures e já estavam em Martim Longo. Apressei-me a ir ao seu encontro e abandonámos o imenso estradão-pista do Dakar. Seguiríamos então pelos verdadeiros trilhos da serra!

Vários kilómetros depois andávamos já a desbravar a serra, sem quaisquer vestígios de presença humana, em direcção azimutal a ténues linhas pedonais marcadas em cartas com 25 anos... o resultado era, simplesmente, espectacular!

Por entre o mato alto, o ar puro perfumado com aromas de jasmim extasiáva-nos os sentidos; a cada curva, o contentamento de mais uma descoberta; no topo dos montes sucessivos, a inspiração de mais uma vista cortante...



Até apanhármos caminhos fabulosos que serpenteavam pelos picos e vales do Caldeirão, num interminável carrosel de maravilha que nos cortava a respiração!


Lugares paradisíacos e de difícil acesso, devido à providencial falta de caminhos ;), onde uma moto é o veículo de eleição para quem se quer aventurar!

E assim fomos progredindo atrás do Sol, alternando cumes onde a vista era espectacular, com vales magníficos onde só apetecia ficar e montar o acampamento! Que pena não podermos parar no tempo...


O Sol já estava baixo e encontrávamo-nos novamente às portas da pista "dakariana", um pouco a sul do cabeço de Mú. O tempo escasseava e, se ainda almejávamos chegar a Monchique, teríamos de tomar um caminho rápido....
Com o alcatrão fora de questão, venha de lá o estradão! :)
A pista estava muito enlameada e escorregadia. Previam-se dificuldades para progredir por ali assim que o Sol se escondesse. O Nuno tomou a dianteira e eu fechei o pelotão.
Ainda não tínhamos feito 5Km na pista a bom ritmo... o Daniel, poucos metros à minha frente, entra mal numa curva muito elameada e escavada, perde o controlo da moto, caí desamparado contra a encosta pedregosa e começa a exclamar com dores!
Assustado, saltei da moto e corri para junto dele...
- "O que sentes, onde te doí?"
- "O braço... parti o braço!..."
- "Não te doi mais nada? As costas, o pescoço? Consegues-te mexer?"
- "Sim..."
- "Sentes-te bem?"
- "Sim..."
Retirei-lhe a moto de cima e apressei-me a chamar o 112.
- "Vou desmaiar..."
- "Não vais nada!" - e despertei-o enquanto o ajudava a imobilizar o braço.
Deitado no chão com dores, pediu-me a última coisa que pensei possível:
- "Tira-me uma fotografia... para se ver onde foi!"
Perplexo, tive que me render à sua insistência!...

Após alguns minutos, ligam-me os bombeiros de Loulé. Expliquei-lhes onde estávamos e, azar, não era a sua jurisdição! Novamente liguei para o 112 e, desta vez, especifiquei claramente que deveriam encaminhar a situação para os bombeiros de Almodôvar.
Entretanto ajudámos o Daniel a levantar-se. A temperatura descia drásticamente e teria de se manter em movimento para não arrefecer demasiado. Já com peúgas e sapatilhas secas, lá começou a andar dum lado para o outro.
Entretanto, liguei para o seguro para accionar um reboque. Após a burocracia do costume, lá nos disseram que iriam enviar alguém para buscar a moto.
Obviamente, teríamos de arranjar forma de a colocar no alcatrão, mas isso era uma questão menor!
Não sabíamos bem qual era o estado da lesão do Daniel nem quanto tempo demoraria a ambulância a chegar, se é que conseguisse ali chegar!
Recebo, finalmente, a chamada dos bombeiros de Almodôvar. Combinei encontrar-me com eles no alcatrão para os orientar, junto à entrada do estradão. Peguei na moto do Daniel e fui ao seu encontro.
Assim que chegaram, deixei-a no alcatrão e enfiei-me na ambulância.
Lá fizémos, com alguma dificuldade, os 5Km pela pista fora até os encontrarmos.
O Daniel já se sentia nitidamente melhor a lá se enfiou na ambulância, junto com as suas bagagens, a caminho de Beja com "escala" no CS de Almodôvar.

Entretanto a seguradora ligou para mais uma dose da sua adorada burocracia. O importante: assegurariam o táxi para levar o Daniel de Beja para Lisboa.
Com o Daniel, já estamos mais descansados...

Passou mais de uma hora e nem sinal do reboque. No alto da serra a noite havia caído. Tínhamos os pés ensopados e estávamos a gelar.
Ligámos novamente à seguradora e fomos informados que já haviam despachado um reboque há meia hora e que já deveríamos ter sido contactados!
Estupefactos, aguardámos... ao frio.
Finalmente, contactaram-nos com a "novidade" de que o tipo se havia "baldado" e não encontravam nenhum reboque disponível na região... teria de sair um de Ourique.
Esperámos... e congelámos. Gelados, esperámos um pouco mais. Estávamos há quase 3 horas ao relento.
Naquele serão criogénico, descalcei as botas alagadas e desatei a correr no asfalto para ver se aquecia os pés um pouco...
Esperámos... e quando estávamos mais que fartos de esperar, esperámos um pouco mais.
Decidimos esconder a moto do Daniel e seguir uns kilómetros à procura dum café.
Encontrámos um a cerca de 6Km para sul. Já havia lá chegado a notícia duma ambulância que andava pela serra e duma moto parada junto ao asfalto, com a GNR ao lado! Parece que quando a ambulância chegou ao asfalto já lá estava a GNR, mas foram-se embora antes de nós chegarmos!
Impressionante... até já sabiam mais que nós!
Já nós estávamos a salivar com a possibilidade de despachar uma linguiça assada quando liga o motorista do reboque: "Estou aí em 20 minutos!" - Lá esquecemos a linguiça...
Regressámos ao local e aguardámos...

"ALELUIA! Lá vem ele! Só demoraram 4 horas!!..." - Estávamos alucinados...
Já devíamos ter zonas do cérebro petrificadas e o raciocínio já não era o melhor! Era só rir...
O motorista era um tipo jovem e cheio de vida! Alegremente, carregámos a moto enquanto sonhávamos com pés secos e quentes, comida gostosa e quente, cama confortável e quente, quente...

O Daniel manteve-nos ao corrente da sua situação e, por volta da hora em que despachávamos a sua moto, já ele tinha tido alta do hospital em Beja com um diagnóstico mais animador: luxação do cotovelo. Séria mas, felizmente, não tinha nada partido.
Ficámos bem mais tranquilos.
O motorista risonho, mecânico de profissão, também ele amigo do TT das 4 rodas, imediatamente começou a desbobinar as suas aventuras com o Vitara todo preparado... delicadamente, tivémos de o "enfiar" na cabina e "mandá-lo" para casa! Noutras circunstâncias seria uma boa companhia. Na presente situação, era um obstáculo entre nós e o "quente"!...

Observámos o reboque desaparecer na noite fria e decidimos rumar a sul, até Salir, em busca dum quarto para passar a noite. Pelo caminho parámos num restaurante-gasolineira para atestar a moto. Eram quase dez da noite. Mortinhos por atestar logo ali, também, o estômago, o proprietário não se mostrou muito receptivo à ideia...
- "Ainda têm alguma coisa que possamos comer?"
- "Umas sandes..."
- "Qualquer coisa quente...não se arranja? Restos de sopa?..."
Entretanto surge a esposa-cozinheira...
- "Ela é que sabe..."
Aplicámo-nos convictamente numa "choradinha" e lá se dispôs a cozinhar qualquer coisa. Serviu-nos bifes e batatas fritas, acompanhados por uma bela salada de alface e tomate. Soube-nos a manjar dos Deuses!...
Comemos afincadamente enquanto víamos, na Eurosport, o resumo do Dakar!

Satisfeitos, e mais quentes :), progredimos até Salir. Lá chegados não ficámos satisfeitos, decidimos continuar até Loulé. Lá teríamos mais escolha para alojamento.
Passava das 23:00 quando encontrámos uma residencial. Foi a escolhida pela sua qualidade mais evidente: foi a primeira que apareceu! :)
Instalámo-nos, lavámo-nos, aquecemo-nos e desvanecemos progressivamente num sono profundo, reconfortante, merecido... e quente.

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