terça-feira, janeiro 03, 2006

Alengarve! Haverá melhor forma de começar um novo ano?

Após concretizada a vontade de disfrutar de férias a primeira semana do ano, os meus planos, partilhados com os de alguns nómadas de raça, alma e coração, convergiram na ambição de cruzar trilhos remotos.
O tempo disponível era exíguo e não permitiria grandes cruzadas, daí que os 5 dias disponíveis fossem direccionados para o Portugal dos "mouros", a região mais pobre da Europa: o Alentejo; e a mais badalada do país: o Algarve.

O Alentejo: terra rude, crua e despida; de gente rija, endurecida pela àrdua vida de trabalho no campo, pelas securas do calor do Verão...e do frio seco do Inverno.
Após décadas a fio, continua mergulhado na ressaca da reforma agrária, com pomares ressequidos, inertes e sombrios, abandonados, com casas arruinadas e obras desfeitas. Terra da minha gente, dos meus genes e valores, da minha cultura. Sinto-me um cidadão do mundo, mas parte da minha alma vive ali, nas colinas despojadas de abundâncias ou caprichos. No Alentejo tudo é singelo, pacífico e despretencioso. O meu coração está em casa.
Redescobrir o "meu" Alentejo aos comandos duma moto é uma aventura inesquecível, inesgotável, é um prazer desmedido, um encanto constante, uma alegria interminável... uma experiência marcante.
Estradas ligam as localidades e as pessoas... mas desligam um laço fundamental: a identidade das gentes, a relação directa do Homem com a terra, com o fauna e flora das suas origens; o cheiro da erva verde pisada, da palha humedecida pelo orvalho da manhã, do rosmaninho em flôr. O montado e a vinha, a companhia dos caseiros num pátio exposto ao sol da tardinha e o "chocalhar" ritmado de um rebanho na planície.
São essas mesmas estradas que arrancam os jovens e os levam para longe empobrecendo, ainda mais, o que já de si parece tão estéril. Parece apenas, pois a verdadeira fertilidade do Alentejo não salta à vista, não brota do solo despropositadamente. É necessário o esforço dos Homens, o trabalho, o suor e tempo, muito tempo, para revelar a riqueza escondida desta terra agreste.
Das memórias que guardo das minhas gentes, recordo os traços mais marcantes de todas elas: a contemplação e a paciência. Carácteres moldados pela terra e pelo tempo, muito tempo. O Alentejo nunca foi habitado pelas personagens anedóticas criadas pelos pobres de espírito. Lá só habitam pensadores, poetas, sonhadores e filósofos, pois aqui o tempo tem outro ritmo: o ritmo de quem está habituado a dar tempo ao tempo, trabalhar sem pensar em enriquecer, pois a verdadeira riqueza advêm de viver contemplando e ajudando a natureza a brotar o pão nosso de cada dia.
Cada recanto enche-se de encanto, cada caminho esquecido na planície nos leva às memórias, aos locais, aos sonhos perdidos de quem um dia fez do Alentejo a sua casa, a sua terra e a sua alma.
Esquecido no caminho das praias e resorts do Algarve, o Alentejo "chora" o abandono de um país que raramente o encontra, que frequentemente o despreza e que nunca lhe reconhece o devido valor histórico, cultural e humano que tem.
Queremos ir por trilhos que já não existem, por aldeias e lugares há muito abandonados, por planícies perdidas onde o Homem só pisa para colher a cortiça a cada 9 anos, por montes, por herdades privadas e vedadas, terras feitas prisioneiras de poucos para prejuízo de muitos, por vales e ribeiras, por entre azinheiras, sobreiros e oliveiras, pelas serras e pelo Guadiana, já prenho de um "grande lago" há muito prometido.

Eu não conheço o Algarve. Espero vislumbrar, nem que seja fugazmente, um pouco da sua beleza, da sua alma e do jeito das suas gentes.
Das dezenas de vezes que já lá estive, calcurreei estradas de V.R. de Sto António a Sagres, de S. Brás a Silves, mas nunca consegui sentir o seu genuíno palpitar, a sua essência pré-saxónica.

Juntos, decidimos embarcar numa viagem pelas entranhas do Portugal mais esquecido. Este é um convite à descoberta e à alienação. Um convite a abrirmos a alma e deixarmo-nos invadir pelas paisagens e costumes destas regiões tão iguais e, contudo, tratadas de forma tão diferente.
Longe das estradas e dos ajuntamentos das grandes cidades, esperamos encontrar o palpitar latente de um povo adormecido pelos anos de isolamento, duma cultura habituada à dureza e à restrição, duma terra perdida que jamais se encontra nas bermas de uma A2 ou de um IP1. É esta a terra que queremos explorar, percorrer, queremos calcurrear e absorver para, quem sabe um dia, desvendar.

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1 comentário:

Flicts disse...

Nunca conseguiria encontrar forma mais poética, tocante e verdadeira de descrever a nossa terra..