quinta-feira, janeiro 05, 2006

Dia 2: Do Alvito a Serpa

A manhã nasceu amena, embora sombria e carregada, como que desafiando a noite límpida e gelada que me acordou por diversas vezes. No topo da colina desamparada, o frio seco da planície fez duas vítimas nessa noite. Duas apenas, pois o amigo Daniel manteve-se quente de alguma forma.


Desfez-se o acampamento, descemos da colina e rapidamente nos dirigimos ao Alvito em busca do pequeno-almoço.
Com a fome mitigada, enveredámos pelos trilhos com destino a Serpa. A progressão revelava-se fácil e certeira com caminhos quase sempre disponíveis, apesar de alguns terem sido há muito apagados das rotas das gentes.


Foi já a meio da manhã que sofremos o primeiro contratempo: um dos depósitos da "Suzy" estava seco e o outro, apesar de atestado, recusava-se a fornecer o necessário conteúdo.
Estava severamente entupido, possivelmente por detritos de ferrugem, e foi necessário proceder à transfusão da gasolina para o depósito vazio. A tarefa foi executada com recurso aos tubos de respiro e à capacidade desumana de degustação do desagradável nectar... vá lá que haviam pastilhas de menta disponíveis!


Resolvida a questão, prosseguimos a jornada. O astro-rei cresceu forte e dissolveu a neblusidade matinal, espreitando agora radiante através dos ceús do Alentejo.
Após vários kilómetros de verdadeiro TT, através da planície desmarcada, chegámos a um açude. O nível das àguas era máximo e o caminho óbvio estava submerso.


A alternativa evidente era transpor o refugo do açude e trepar a encosta adjacente. Nada de excepcional e não perdemos muito tempo com isso.


Continuámos por caminhos desaparecidos dos quais só as bermas enrugadas, criadas em tempos, revelavam que as cartas estavam correctas. Maravilhados, estávamos já a sudeste da Vidigueira e a caminho do Pedrogão, onde atravessaríamos o rio para a margem esquerda.



Pouco depois passámos pelo Pedrogão e atravessámos a ponte sobre o Guadiana, encurralado mais uma vez por um novo paredão de barragem. E muita àgua tem o nosso Guadiana... o Alentejo não se acostuma a tanta fartura.



Deixámos novamente o asfalto após a ponte e apanhámos um dos braços da albufeira. Seguimos pela margem algumas centenas de metros em busca dum local para o transpor. E foi junto a uma grande vala que encontrámos as condições "ideais" para o fazer!
O piso estava bastante mole e escorregadio e os deslizes, por vezes, eram inevitáveis.


Enveredámos por trilhos ao longo da margem do Guadiana e o rio não se fez esperar: juntou-se aos campos para nos brindar com um festival de paisagens inesquéciveis, autênticas pérolas selvagens onde só os rebanhos na distância nos recordavam a proximidade da civilização.
São estes os caminhos escondidos que procurávamos. Os recantos perdidos por onde nada mais que uma brisa suave, um pastor e seu rebanho, manifestam a sua presença. Hoje, estas paragens foram visitadas por três estranhos. Quem sabe quando tornarão a vislumbrar gentes desconhecidas?


A noroeste de Serpa, junto ao Guadiana, uma azenha de àgua jaz na margem do rio que um dia lhe deu a vida, que lhe justificou a existência. Muito longe, perdida dos anos em que moeu do grão que alimentava todo um país, esta peça de engenharia está em ruínas. É difícil enfrentar a ruína sem sentir um choque, uma nostalgia de um passado tão próximo e que, ao mesmo tempo, parece tão distante. Fantasmas de outros tempos gravados para sempre na paisagem, quais cicatrizes antigas marcadas nas margens do rio.


À medida que Serpa surgia no horizonte, os trilhos vagos deram lugar aos caminhos que, por sua vez, deram lugar aos estradões. E foi através dum largo estradão, a mais de cem à hora, que nos aproximámos em apoteose da vila.
A fome era negra mas o destino estava bem claro. Conhecedor destas paragens, o Nuno rapidamente nos encaminhou até às "fresquinhas" mais vivas do país, acompanhadas por bom pão, queijo, azeitonas, salada de ovas e cabeça de borrego assada. Eu ainda dispensei tais iguarias e saciei-me com uma sopa de legumes como há muito não comia.


Após o repasto tratámos da merecida manutenção das motos, com direito a banho para nos livrarmos das dezenas de kilos indesejados de barro e lama.
O Nuno desencantou uma casa de hóspedes e lá decidimos abdicar da noite gelada por um banho revigorante e uma cama quentinha!

No outro lado da rua, homens evergando samarras típicas entoavam cantigos corais à porta de um café. Em silêncio dispersavam para, novamente, se reunir numa rua mais à frente. Não era um festival, não era um concerto, não era um evento nem uma arruada. Era apenas mais uma noite de um qualquer dia de semana numa vila alentejana. Este ritual secular permanece vivo nas almas destas gentes. A tradição, felizmente, ainda vai sobrevivendo e certas coisas ainda são o que eram. E porque não?

Depois da higiene, rumámos novamente à cervejaria para mais umas "fresquinhas". Eu cumpri o ritual e debrucei-me sobre uma travessa de migas com entrecosto frito! Aqui a comida tem "aquele" sabor.
Satisfeito o corpo e alma, restava dar-lhe o merecido descanso. A cama acolheu-nos já passava da meia noite.

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