sexta-feira, janeiro 06, 2006

Dia 3: De Serpa a Alcoutim

Conforme combinado, às 8:30 estávamos na rua a carregar as motos. Chuviscava insistentemente e parecia que teríamos pela frente um dia hostíl às nossas intenções.

Após o pequeno-almoço, rumámos a sul através de largos estradões até às margens do Guadiana. Enveredámos depois por trilhos barrentos bem à moda de Serpa que, mais uma vez, não nos levavam a lado nenhum. As discrepâncias entre o terreno e as cartas eram grandes e não conseguimos encontrar alternativas.


Após mais de uma hora às voltas nas ladeiras de barro, muito peganhento devido à chuva antecedente, o material acusava já o esforço... a motos aqueciam e as rodas da frente já começavam a bloquear.
Numa subida íngreme, coroada no topo por um planalto cultivado, foi necessário proceder a uma inversão de marcha delicada. Enquanto efectuava a manobra no espaço exíguo, pontuado por enormes calhaus, ouvi um estalo tenso e perdi a tracção. "Pronto, parti a corrente!..." - exclamei.

Parei a moto e analisei a trajectória e o estrago. Passava junto a um enorme calhau e, felizmente, não tinha partido a corrente. A protecção de alumínio tinha cedido à pressão contra a pedra e empurrou literalmente a corrente para fora da cremalheira.
Enquanto a colocava novamente no sítio o Nuno, que andava por ali às voltas, perdeu a embraiagem na subida e viu-se forçado a entrar pelo campo lavrado a dentro. Bloqueou a roda da frente com barro e pronto, lá teve de analizar a massa consistente bem de perto :) ...


Finalmente, conseguimos retirar as motos daquela pasta impiedosa e proceder à desmontagem e limpeza dos guarda-lamas.


Decidimos então, em boa hora, regressar a Serpa e procurar melhores caminhos para sul. Por aqui estava visto que não iríamos a lado nenhum. Eram 11:30 e ainda andávamos nos arrabaldes de Serpa...
O céu lavou a cara e deixou o Sol penetrar. O dia estava agora agradável e luminoso. Enveredámos pela estrada asfaltada em direccção a S. Brás, sondando as bermas em busca de um desvio para o campo.
Poucos kilómetros adiante, um caminho frequentado levou-nos pelos montes junto ao rio.


Mas não por muito tempo. Recentes alterações nas propriedades vedaram todas as saídas daquele local e vimo-nos forçados a regressar ao asfalto. Tentámos praticamente todas os caminhos que divergiam da estrada, mas sem grande sucesso.
E com isto chegámos ao estradão que nos leva ao Pulo do Lobo.
A enrolar punho por ali fora, ia para meter a quarta... BOIIING! - "Epaaaah!..." - lá se foi o cabo da embraiagem.


O mal era antigo. O cabo foi-se desgastando pela fricção na boca da bicha e eventualmente cedeu. "Aqui não ficamos!" - e saquei do rolo de arame.
Com a preciosa ajudo de dois hábeis "tecelões", lá improvisámos um cabo novo!



Retirado que estava o antigo, o cabo novo deslizou pela bicha adentro sem problemas! Arcaicamente instalado, estava pronto a cumprir a sua função: tirar-nos dali!



Passados poucos momentos e estávamos de novo em andamento. Não muito seguros da eficácia do improviso, decidimos retomar a estrada para Mértola. Lá tentaria remediar melhor o contratempo.
O céu entretanto vestiu-se de nuvens e a aproximação à vila fez-se já debaixo de aguaceiros. Eram duas da tarde.


Recolhemo-nos a um restaurante para repôr energias e disfrutámos do saboroso lombo assado e de sopas de peixe do rio. Iguarias...


Após o repasto, saí em busca duma oficina de motorizadas para comprar um cabo. Rapidamente encontrei o que procurava e bastaram 10 minutos para solucionar o problema.
Deixámos Mértola e dirigimo-nos para sul junto ao Guadiana. A paisagem fenomenal encantáva-nos ao dobrar de cada esquina. O Guadiana pacificamente seguia o seu rumo para o mar e nós pretendiamos seguir-lhe as voltas.


Progredíamos num estradão bem marcado que nos levou até uma propriedade fechada e desolada. Atravessámos o portão aberto e continuámos pelo caminho até junto dos casarões em ruínas. Ali, o caminho desvanecia e perdia-se numa descida pedregosa. Não hesitei e fiz-me à descida. Eis que surge uma vedação, repentinamente, no meio da descida e, sem grande margem para travagens, passei-lhe por cima!


A descida morria nas margens de uma ribeira e, pacientemente, analisámos as hipóteses de a atravessar incólumes.
No entretanto, surgiu uma pickup no topo da subida e lá de dentro saiu um homem exclamando: "Vô fechar o portaummm!"
Perguntámos, ligeiramente encavacádos pelo estado da vedação, se dava para atravessar a ribeira e se eventualmente haveria saída do outro lado, ao que respondeu: "Nã sei... eu name meto aí com a carrinha! Nã sei o cá além daquele lado! Se quizerem voltar para trás táli uma passagem piquena das ovelhas junto ao murro pronde podem sair... eu vô fechar o portão!"
Enfiou-se na pickup e ficou a apreciar o espetáculo...
"Belo!" - exclamámos.


Como não há àgua que meta medo aos nómadas, só havia um caminho: para a frente! Sem preocupações com a possibilidade de não haver saída do outro lado do vale, decidimos: "Aqui não ficamos!" - O Guadiana segue o seu rumo e nós queremos ir com ele. Haja o que houver!
Sendo a AT a moto com a entrada de ar mais elevada, coube-me a tarefa de avaliar a real profundidade da ribeira. Apesar de haver um pequeno fundão a meio, e da saída ser um pouco íngreme em areão solto, passei sem dificuldade.


A frente da moto "abria" as àguas e, com os pés nos apoios, nem molhei os joelhos. Poderiam agora progredir as DR's sem receio.
O ataque à ribeira era também complicado, pois a recta mais segura para a transpôr iniciava-se num ponto da margem muito arenoso e "vedado" pelos ramos de uma velha àrvore.
O Nuno resolveu então ser o primeiro a "testar" a DR...




E só faltava o Daniel, que estava a sentir algumas dificuldades em manobrar a "Suzy" sobre o areão, agora sozinho do outro lado.


E, evidentemente, necessitaria de ajuda a colocar-se no melhor ponto de transposição. Ainda estava eu a pensar no assunto, já o Nuno andava dentro de àgua para ir ajudar o Daniel!


Este é o inigualável espírito deste grupo de amigos!
Depois de devidamente posicionado, o Daniel enfrentou a sua travessia sem nenhum problema.



E lá teve o Nuno que se "demolhar" novamente na àgua para finalmente averiguarmos para onde seguiríamos a partir dali. E haverá alguém que afirme que este sorriso não pertence a quem é apaixonado pelo que faz?


Alguns metros adiante encontrávamo-nos num velho pomar abandonado. As àrvores de fruto mortas, cadavéricas, negras; as ruínas de algumas casas, os muros de pedra, tudo envolto na erva alta. Quando teria alguem ali estado pela última vez? Não sei precisar...



Após reconhecermos o local a pé, determinámos que a melhor saída seria arranjar forma de progredir pela encosta cima ao encontro de um caminho marcado na carta, se ainda existisse.
O terreno era muito escorregadio. A erva verde, o solo barrento e molhado, os calhaus soltos do tamanho de meloas, as valas rasgadas pelas enchurradas e a encosta inclinada deram-nos trabalhos para quase uma hora. Uma a uma, as motos lá foram progredindo até ao topo do monte.







No topo encontrámos, de facto, vestígios do que teria sido em tempos um caminho! Prosseguimos já com o dia a despedir-se atrás dos montes e, pouco depois, iniciámos a espectacular "noturna" pela serra que nos levaria até Alcoutim, interrompida apenas pela necessidade de cruzar o Vascão pelo asfalto.
Pelas 21:00, estávamos à porta da Pousada da Juventude onde decidimos passar a noite. Plantada na encosta com um vista suberba sobre a vila, a pousada sumptuosa estava praticamente vazia. Não sei como se justificam os investimentos neste país.


Depois de instalados e lavados, descemos à vila para jantar e acabámos por sucumbir a um cozido de grão magistral!
Regressámos à pousada e delineámos grosseiramente o dia seguinte, já por terras algarvias. Despedimo-nos do Alentejo com um "até já", pois as inesquecíveis paisagens de que disfrutámos são apenas uma gota de àgua no imenso caudal de um Guadiana abundante que queremos, em breve, revisitar.


Oxalá permitamos ao Alentejo conservar todo o seu esplendor; oxalá saibamos resistir ao apelo do turismo de massas, selvagem e ambientalmente desinteressado; oxalá sejamos capazes de preservar as maravilhas ocultas que o Alentejo nos revela atrás de cada colina; oxalá possamos mostrar aos nossos netos os mesmos caminhos por onde um dia, felizes, enveredámos; "inch'Allah"...

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1 comentário:

Nada em mim sou eu! disse...

Pefeito caras, parabéns pela viagem e pelas belas imagens e histórias!